Por Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch e Guilherme Pupe da Nóbrega (*)
No texto anterior, introduzimos a importância de uma cultura de conformidade como mecanismo de prevenção de ilícitos e, especialmente, de atos de improbidade. Nada obstante, notamos as dificuldades que surgem a partir da vagueza e da abertura de normas que por vezes dificultam parâmetros objetivos para o desenvolvimento de uma estrutura interna de regramento. Como forma de buscar diretrizes mínimas, invocamos iniciativas bem-sucedidas para delas extrair a proposta que, agora, será sintetizada nesta segunda parte do texto, sem nenhum viés prescritivo, mas, sim, única e exclusivamente propositivo.
Em primeiro lugar, um programa de conformidade deve partir de estudos prévios a respeito da companhia, de sua atividade, do nível de interação com a esfera pública, enfim, das especificidades que cercam o negócio.
Aquele levantamento haverá de culminar em regramento de práticas internas e externas em consonância com a legislação aplicável. Esse conjunto normativo deverá ser objeto de constantes comunicação (endomarketing), elucidação e treinamento (sempre documentados), em linguagem simples e facilmente apreensível por todos os colaboradores[1], sem prejuízo, adicionalmente, de manuais de conduta tão específicos quanto os diferentes setores da empresa a que se destinem.
Além disso, esse aparato deve passar periodicamente por aperfeiçoamento e reforço, notadamente à vista de estudos de casos externos e internos e de modelos de sucesso[2] a partir dos quais deverá se buscar contínua evolução e recrudescimento da integridade. As normativas deverão, ademais, estabelecer padrões de conduta, mecanismos de prevenção e de gerenciamento de riscos, canais de denúncia, sanções por faltas e ações de pronto endereçamento de problemas.
Outro padrão imprescindível e inafastável de todo e qualquer programa de conformidade é o chamado tone from the top (ou tone at the top)[3], consistente na formação e na disseminação de uma cultura de conformidade a partir do exemplo dado “de cima”. Esse desenvolvimento, forçoso dizer, deve ser verticalizado, sendo conveniente, no particular, o paralelo com a dominação racional-legal weberiana[4]: se as regras a respeito das quais o líder busca engajamento de sua equipe não são por ele próprio observadas, haverá inevitável erosão de sua legitimidade, além da deterioração da coercibilidade das diretrizes. É preciso, pois, coerência institucional, reforço positivo e exemplo pela liderança.
Indispensável, indo além, a designação de setor ou de funcionários específicos e independentes, com acesso direto à instância decisória, a quem se atribuirá o fomento à cultura de conformidade. É falar, um ponto focal no que toca a compliance, que ficará institucionalmente responsável — muito embora essa deva ser tida como uma responsabilidade disseminada, com incentivo a alertas e a detecção[5] — por análise minuciosa e periódica de riscos operacionais[6], na prevenção de irregularidades e no pronto controle de danos e endereçamento de eventuais faltas cometidas.
É natural e, mesmo, necessário que boa parte daquelas atribuições seja exercida em interface com outros setores, como o de recursos humanos e de fornecedores — a partir de investigação de background e referências de contratantes anteriores[7] — e de contabilidade, com registros fiéis e confiáveis das práticas internas. Sem embargo, é importante que dado corpo de colaboradores, independente, tenha como sua atividade-fim essa atividade-meio da instituição: conformidade.
Complementando o esforço organizacional, auditorias periódicas, internas (realizadas por agentes independentes do setor auditado) e/ou externas, reforçam sobremaneira a política de conformidade e a segurança. O programa haverá, então, de ser reafirmado por monitoramento contínuo, por medidas disciplinares face a descumprimentos e por meio de reforço positivo premiando boas condutas.
Acerca de irregularidades constatadas, a falta de sua prevenção não denota, em absoluto — a não ser quando recorrentes —, um programa de conformidade falho. Erros, portanto, terão papel importante no aprimoramento e na futura prevenção, ao mesmo tempo em que funcionarão como importante termômetro da efetividade do programa. Releva ter presente, pois, que “implementar” é verbo que, quando versa a respeito de política de integridade, possui forma nominal sempre no gerúndio. É missão constante e inacabável.
Finalmente, todos esses pilares devem sofrer constante ajuste e sintonia fina com as necessidades e as especificidades da empresa, notadamente, como antecipado, no que toca aos mercados em que atua, à sua estrutura organizacional, número e perfil de funcionários, interação com a esfera pública e participação societária que enseje relações com controladora, controladas, coligadas, consorciadas, acionistas e o mercado. Em outras palavras, o grau de cada medida ou princípio há de ser proporcional às características da empresa, orquestrados os parâmetros de maneira conjugada com a empresa.
Uma vez construída essa identidade de conformidade, deve ela ser projetada para todos os stakeholders, de modo, mesmo, a que se evitem abordagens externas indevidas. Da integridade deflui confiabilidade como agregadora de valor à marca, é verdade, mas, no que diz respeito a programa de conformidade, essa há de ser consequência, não fim último.
Na esteira dessa proposta, e a pretexto de conclusão deste texto, encerramos 2016 com 79,7 milhões de feitos em tramitação no Judiciário[8]. O Direito brasileiro, de modo geral, tem convivido nos últimos anos com um grande estímulo ao chamado sistema multiportas de resolução de disputas. Isso se acentuou com o Código de Processo Civil de 2015 (Lei 13.105), que reforçou a mensagem de que, embora a jurisdição seja o método oficial de solução de conflitos, não é ela o único método existente. O Judiciário, assoberbado por um congestionamento de processos que lhe são levados a conhecer, pretende cada vez mais funcionar, ele sim, como método alternativo, ultima ratio, apenas provocado quando frustradas as possibilidades diversas de solução.
Soma-se àquela constatação a informação de que, em 2014, a taxa de sobrevivência de microempresas com até dois anos era de 55%[9], o que importa dizer que 45% foram extintas, em parte, possivelmente, pela incapacidade de prevenir ou de endereçar adequadamente problemas com repercussões jurídicas.
Com apoio naquelas duas premissas, e na esteira de eventos recentes, cremos que a atuação empresarial sofrerá — em verdade, já vem sofrendo — uma guinada que deixará de enfocar exclusivamente métodos alternativos para se voltar para a prevenção de problemas. Isto é, a atuação corporativa deverá se concentrar em momento muito aquém da judicialização ou do agravamento de irregularidades.
Já é um dado inescapável às empresas de maneira geral que o custo do programa de integridade é consideravelmente inferior ao custo de sua não implementação. A destinação de recursos merece priorizar a atividade-fim, mais que questões jurídicas. A área de integridade, pois, encampa de maneira eficiente parcela desse esforço institucional, com menos gastos e com maiores repercussões positivas.
Certo que há balizas mais ou menos objetivas que auxiliarão no desenvolvimento de uma cultura de conformidade, mas essas diretrizes necessariamente hão de conviver com o ajuste às especificidades de cada companhia. Como toda fase de transição, essa disseminação se dará gradativamente, mas nos parece fora de dúvida que esse processo, já iniciado há algum tempo, ganhou vigor e merecerá intensificação no médio e longo prazo.
[1] NEVES, Edmo Colnaghi. Compliance e comunicação. Disponível em http://compliancereview.com.br/compliance-e-comunicacao/
Acesso em 20.5.2018.
[2] A título de exemplo, o III Prêmio Compliance Brasil trouxe programas exitosos, muitos dos quais fornecem nos próprios sítios eletrônicos das companhias balizas relevantes que poderiam muito bem agregar a modelos em desenvolvimento, numa retroalimentação sadia.
Disponível em https://www.verdeghaia.com.br/blog/blogpremiados-compliance-brasil-2017/ Acesso em 20/5/2018.
[3] MATTOS, Carolina Monteiro. A importância do “tone at the top” na implementação de programas de compliance.
Disponível em http://compliancereview.com.br/importancia-do-tone-at-the-top-na-implementacao-de-programas-de-compliance.
Acesso em 20/5/2018.
[4] WEBER, Max. Os Três Tipos Puros de Dominação Legítima. Tradução de Gabriel Cohen. Rio de Janeiro: VGuedes Multimídia, 2008.
[5] A proteção ao denunciante é, inclusive, prevista no artigo 33 da já mencionada Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003.
[6] Ilustrativamente, são situações de risco comuns: participação de licitações, contratação de agentes e de ex-agentes públicos, contatos com agentes públicos no curso de operações, obtenção de permissões, autorizações e licenças, entrega de brindes ou amenidades a agentes públicos, fusões e aquisições e patrocínios e doações.
[7] WILLIFORD, Kwamina; SMALL, Daniel. Establishing an Effective Compliance Program: An Overview to Protecting Your Organization.
Disponível em http://www.acc.com/legalresources/quickcounsel/eaecp.cfm. Acesso em 19/5/2018.
[8] http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/09/e5b5789fe59c137d43506b2e4ec4ed67.pdf
(*) Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB).
(*) Guilherme Pupe da Nóbrega é advogado do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP, diretor-adjunto da Escola Superior de Advocacia da OAB-DF e secretário-geral da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, em 05.04.2019.