Por Helio Telho Corrêa Filho e Diogo Souza Telho*
O acordo de leniência foi introduzido em nosso ordenamento jurídico pela legislação de defesa da concorrência como instrumento destinado a aprimorar a investigação e a repressão aos cartéis. Valendo-se da teoria dos jogos, o objetivo é quebrar o elo espúrio que une indevidamente concorrentes cartelizados, estimulando a cooperação de um deles com a Justiça em troca do alívio ou até da isenção de penas, com a finalidade de se obter, além do compromisso de cessação da conduta ilícita, o desmantelamento do cartel e provas para a identificação e punição dos seus demais membros. Parte-se do pressuposto de que o cartel é um acordo ilícito e clandestino, cujo enfrentamento eficaz somente é possível com a colaboração de algum de seus membros que, para tanto, necessita ser persuadido por meio da leniência. Isto é, do perdão de parte ou da totalidade da punição cabível.
A corrupção e as organizações criminosas possuem algumas características que as assemelham ao cartel. A mais notória é a existência de uma espécie de conluio ou acordo ilegal e clandestino, oculto, escondido, secreto, sobre o qual se sustentam. No cartel, entre concorrentes; na corrupção, entre o corruptor e o corrompido; nas organizações criminosas, entre seus integrantes. A cessação da conduta delitiva, a obtenção das provas necessárias à identificação dos infratores e à punição dessas espécies de ilícitos passam pela quebra dessa trama e do sigilo que a protege. Portanto, esses são os objetivos do acordo de leniência, previsto na Lei Anticorrupção, e do acordo de colaboração premiada, regulamentada pela Lei das Organizações Criminosas.
O acordo de leniência é um negócio jurídico bilateral com natureza dúplice – técnica especial de investigação e meio de defesa – pelo qual a pessoa jurídica reconhece práticas lesivas à Administração Pública e se compromete a colaborar com o Poder Público, cessando a conduta ilícita, reparando o dano causado e fornecendo informações e provas que permitam a identificação e a responsabilização dos demais envolvidos, em troca do abrandamento ou até da isenção de sanções a que esteja sujeita.
A Lei Anticorrupção, que prevê tanto a responsabilização administrativa, quanto a responsabilização judicial da pessoa jurídica que pratique ato lesivo contra a Administração Pública (art. 18), regula expressamente o acordo de leniência como instrumento de persecução a cargo das autoridades administrativas (art. 16, caput), mas não faz o mesmo em relação à responsabilização judicial, a cargo da União, dos estados, dos municípios e do Ministério Público. Por essa razão, respeitadas vozes sustentam que o Ministério Público não teria legitimidade para firmar acordos de leniência.
De fato, a Lei Anticorrupção, que regulou em detalhes a investigação e o processo administrativo de apuração de responsabilidade, não fez o mesmo com o processo de responsabilização judicial pelos atos lesivos à Administração Pública. Porém, não foi omissa a respeito.
Ao contrário, em seu art. 21, expressamente submeteu a persecução judicial às regras da Lei de Ação Civil Pública que, por sua vez, permite ao Ministério Público instaurar o Inquérito Civil Público (art. 8o, § 1o), para colher as provas necessárias à comprovação da infração e à identificação dos infratores, bem assim o legitima a tomar o compromisso de ajustamento de conduta às exigências legais, com eficácia de título executivo extrajudicial (art. 7o, § 6o).
O compromisso de ajustamento é um negócio jurídico bilateral, pelo qual alguém reconhece que sua conduta ofende a lei, se comprometendo a cessá-la, adequando seu comportamento às exigências legais, e se submetendo às eventuais consequências dela advindas, inclusive à obrigação de reparar o dano por ventura causado, em troca de não ser responsabilizado judicialmente.
Portanto, não é difícil concluir que o acordo de leniência é uma modalidade ou espécie de compromisso de ajustamento de conduta, para o qual o Ministério Público é legitimado e do qual pode lançar mão para investigar infrações à Lei Anticorrupção.
Mas, não é só. A par da legitimação primária para promover a responsabilização judicial da pessoa jurídica por infração à Lei Anticorrupção, o Ministério Público possui legitimação subsidiária para pleitear também a imposição judicial das sanções administrativas, quando houver omissão das autoridades competentes (art. 20). Nessas circunstâncias, no acordo de leniência, rectius compromisso de ajustamento de conduta, firmado com o Ministério Público, podem ser negociadas as sanções administrativas previstas na Lei Anticorrupção, caso em que não poderão mais vir a ser objeto de persecução administrativa, sob pena de violação aos princípios da segurança jurídica, da confiança no Estado, da boa-fé e da proibição de bis in idem ou dupla punição de idêntica natureza pelo mesmo ato ilícito.
Em outras palavras, o acordo de leniência celebrado com o Ministério Público interdita a ação administrativa da autoridade competente inicialmente omissa, que não poderá mais agir para aplicar à pessoa jurídica colaboradora as sanções decorrentes das condutas que houverem sido ajustadas.
*Helio Telho Corrêa Filho, ex-promotor de Justiça em Goiás e no Distrito Federal, ex-procurador regional dos Direitos do Cidadão e ex-procurador regional eleitoral, é procurador da República em Goiás.
*Diogo Souza Telho, mestrando em Estrategias Anticorrupción y Políticas de Integridad pela Universidad de Salamanca e advogado associado no Departamento de Compliance Corporativo e Investigações do Chediak Advogados no Rio de Janeiro