Por Silvio Guidi (*)
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) vem ao Brasil numa onda mundial de proteção de informações pessoais, as quais, em vista de frágeis formas de armazenamento ou ocultação da intenção de coleta, foram apropriadas ilegitimamente e de forma sistêmica. Essa apropriação foi tão intensa que se revelou como uma epidemia global. Seus efeitos impactaram as relações de consumo, o comportamento do mercado e até disputas eleitorais. Mas essa história pouco tem a ver com a saúde. Quero aqui dizer que a norma não surge em razão do uso indevido de dados de pacientes e beneficiários de planos de saúde.
Por outro lado, o impacto da vigência da LGPD ao setor da saúde é enorme. O setor, que já se relaciona com ANVISA, VISAs estaduais e municipais, ANS, PROCON, Tribunais de Contas, Ministério Público, CADE etc., passará a se vincular com mais uma entidade reguladora: a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Para além disso, passa a ter de cumprir uma série de obrigações burocráticas conectadas ao armazenamento, tratamento, disponibilização e dispensação de dados. O mercado reagiu a esse cenário, havendo hoje um variado número de prestadores dispostos a implantar sistemas capazes de garantir às instituições de saúde sua adequação às exigências da LGPD. O custo dessa inadequação é alto, podendo chegar a cinquenta milhões de reais por infração.
A LGPD, ao menos como novidade da área da saúde, vem para pior. É que dela deriva a ampliação de custos para a saúde (setores público e privado) sem a respectiva melhoria na saúde da população. Ou seja, ao passo em que se ampliam os gastos, não se vê a contrapartida: melhoria da prestação, aumento da capacidade de prevenção ou proteção da saúde. Pelo contrário, serão retirados recursos de gestão e prestação para cumprimento de normas burocráticas pouco úteis para o setor da saúde.
Não se pode esquecer, ainda no âmbito da pouca utilidade da LGPD ao setor da saúde, que os dados de pacientes e usuários de planos de saúde sempre foram sigilosos. Desde há muito a utilização desses dados só poderia ocorrer em favor do tratamento do paciente ou da atenção à sua saúde. Violação de sigilo sempre foi crime, infração ética e ilícito civil.
Embora esses argumentos possam ser utilizados para questionar a constitucionalidade da LGPD, ao menos em relação à sua aplicabilidade indistinta ao setor da saúde, prefiro pensar em como acomodar a interpretação do seu conteúdo com as normas constitucionais que garantem ao cidadão que seu direito à saúde será garantido pelo Estado. Daí trago o tema da epidemiologia. Muito embora exista hoje no país a utilização de dados epidemiológicos para a realização de políticas públicas e racionalização de recursos, não se pode negar que tal uso está muito aquém do ideal.
O gestor público tem poucas informações sobre a saúde da população. Aliás, quando as tem, está tradicionalmente diante de dados fragmentados, incompletos ou até mesmo desnecessários. Exemplo disso é a forma como o Estado adquire medicamentos para fornecer à população e/ou utilizar em tratamentos. Ao invés de se valer de dados epidemiológicos, que levariam em conta não só o histórico de consumo, mas também a efetividade do medicamento e o efeito de medidas adotadas para evitar o surgimento de novos casos da doença que a droga adquirida visa a combater, a aquisição tem uma única referência: quanto se comprou daquele remédio no ano anterior.
Mesmo as operadoras de planos de saúde têm dificuldades para gerar seus dados epidemiológicos, de modo a fomentar que as doenças que afligem as vidas que segura sejam combatidas por meio da prevenção e da proteção.
Creio que as imposições da LGPD ao setor da saúde podem ser úteis nesse cenário. Ao impor mais rigor na coleta, tratamento e dispensação desses dados, a LGPD dará ao setor da saúde maior rigor na gestão desses dados, viabilizando a utilização para um bem maior e coletivo, qual seja a austeridade na utilização do orçamento da saúde, por meio da gestão da saúde à luz de dados epidemiológicos. Isso garantirá em maior medida o atendimento ao direito à saúde pelo Estado e o equilíbrio das contas dos prestadores privados.
(*) Silvio Guidi é sócio da área de Healthcare e Life Sciences do VGP Advogados e doutorando e mestre em direito administrativo pela PUC-SP, autor do livro Serviços Públicos de Saúde (Quartier Latin, 2019).
Fonte: O Estado de S. Paulo, em 19.11.2019