Por Rogério Fernando Taffarello e Flávia Guimarães Leardini
Reforma legislativa altera o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal; entenda as mudanças
Em edição extra do Diário Oficial da União, o Presidente da República sancionou nesta quarta-feira, 25/12, a Lei 13.964/19, conhecido como "Pacote Anticrime".
Trata-se de reforma legislativa de grandes impactos para a Justiça Criminal, visto que, de uma só vez, altera nada menos do que 17 leis atualmente vigentes, entre as quais o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal.
Entenda abaixo as principais mudanças:
Código Penal
Em relação ao Código Penal, a nova lei criou uma hipótese fictícia de legítima defesa do agente de segurança pública, de aplicabilidade e técnica jurídica discutíveis (novo art. 25, parágrafo único); dispôs-se sobre a execução da pena de multa (novo art. 51); alterou de 30 para 40 anos o tempo máximo de cumprimento de penas privativas de liberdade (novo art. 75); ampliou os requisitos para concessão de livramento condicional (novo art. 83, inc. III); criou uma hipótese de perda "dos bens [...] correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja compatível com o seu rendimento lícito", de difícil e perigosa aplicação concreta (novo art. 91-A); ampliou o rol de causas impeditivas da prescrição (novo art. 116, incs. III e IV); incluiu novas hipóteses de roubo majorado – a saber, pelo emprego de arma branca (novo art. 157, § 2º, VII) e pelo emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido (art. 157, § 2º-B); e aumentou de 8 para 12 anos a pena máxima do crime de concussão (novo art. 316), equiparando-a à do crime de corrupção e corrigindo o que parece ter sido um esquecimento do legislador da Lei 10.763/03 que, à época, aumentou somente as penas da corrupção ativa e passiva.
Código de Processo Penal
Mais profundas são as mudanças no Código de Processo Penal. Embora não constasse do projeto original, a figura do "juiz de garantias", responsável por controlar a legalidade da investigação criminal (fase prévia ao processo judicial), foi contemplada no texto aprovado, atendendo a uma demanda de mais de década de pesquisadores de direito processual penal que, inspirados em modelos legislativos de diferentes países dos continentes europeu e americano, reclamavam ao direito brasileiro a separação do juiz responsável pela investigação do responsável pelo processo e sentença, com vistas a propiciar maior independência e isenção ao ato de julgar.
Por esses motivos, a ideia já fora contemplada no Projeto de Novo Código de Processo Penal (PLS 156/09), apresentado ao Senado Federal há uma década e ainda em tramitação, de cujos debates aproveitou-se, neste ano, o Congresso Nacional para incrementar o projeto anticrime. A inovação (novos arts. 3º-A a 3º-F do CPP) homenageia a imparcialidade da jurisdição e ajuda a aproximar o Brasil dos sistemas processuais da maioria dos países democráticos, razões por que é bem-vinda, mas contém problemas, sendo o principal deles a extensão da competência do juiz de garantias até momento posterior ao da instauração do processo (v. novo art. 3º-C), quando o recebimento da denúncia e todo ato posterior deveria caber ao juiz do processo.
Outro instituto processual que mereceu especial atenção na nova lei refere-se à proteção à cadeia de custódia da prova (novos arts. 158-A a 158-F do CPP), que visa a dar maior confiabilidade às provas coletadas e, portanto, às decisões judiciais que nelas se fundem, sendo este outro tema em que a legislação brasileira encontrava-se muito atrasada em relação às leis processuais de outros países.
Ainda quanto a alterações promovidas no Código de Processo Penal, criaram-se garantias defensivas especiais para agentes de segurança pública (novo art. 14-A); modificou-se o regramento legal atinente ao arquivamento de inquéritos (novo art. 28); criou-se legislativamente o acordo de não persecução penal para crimes de média gravidade (art. 28-A); alterou-se o tratamento da alienação de coisas apreendidas (novo art. 122), bem como da destinação de obras de arte que tenham sido objeto de perdimento (novo art. 124-A) e venda (novo art. 133) e utilização por agências públicas (novo art. 133-A) de outros bens; reforçou-se a garantia contra o uso indevido de provas ilícitas (novo art. 157, § 5º); aperfeiçoou-se o capítulo referente a medidas cautelares, com a importante supressão, também há muito reclamada pela doutrina, da possibilidade de que sejam decretadas pelo juiz sem um prévio pedido do Ministério Público ou representação da autoridade policial (novo art. 282, § 2º); reafirmou-se a importância das audiências de custódia (novo art. 310) e a necessidade de a decretação da prisão preventiva ser concretamente justificada (novos arts. 311, 312, 313, 315 e 316); buscou-se dar a devida efetividade, no processo penal (novo art. 315, § 2º), à garantia constitucional da motivação das decisões judiciais (CF, art. 93, IX), a exemplo do que se fizera na reforma do Código de Processo Civil de 2015 (CPC, art. 489, § 1º); dispôs-se sobre a execução provisória de penas impostas pelo Tribunal do Júri (novo art. 492) e, finalmente, alterou-se pontualmente o sistema de nulidades (novo art. 564, inc. V) e o recursal (novos arts. 581, XXV e 638), para que mantenham coerência com as demais modificações promovidas.
Lei de Execução Penal
Quanto às alterações na Lei de Execução Penal, a nova lei detalhou o regramento da identificação de perfil genético mediante extração de DNA dos condenados por crimes violentos e/ou hediondos (novo art. 9º-A, §§ 1º-A, 3º, 4º e 8º) e, no mais, endureceu as regras de execução de penas: ampliou a incidência do regime disciplinar diferenciado para presos perigosos (novo art. 52); elevou o tempo de cumprimento de pena necessário à progressão de regime (novo art. 112); e restringiu o direito à saída temporária (art. 122, § 2º).
Outras mudanças:
O Pacote Antricrime alterou, ainda, as seguintes leis:
- Leis dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), ampliando o rol de delitos que devem ser assim considerados e, portanto, merecem tratamento penal e processual mais duro;
- Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), permitindo o acordo de não persecução cível; alterou a Lei de Interceptações Telefônicas (Lei 9.296/96), para regular a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e seu uso como meio de prova;
- Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/98), para permitir, na investigação dos crimes por ela regulados, o uso das técnicas de ação controlada e de infiltração de agentes – até então restritas às investigações de organizações criminosas;
- Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/03) para endurecer penas de crimes relacionados ao uso e comércio de armas e criar o Banco Nacional de Perfis Balísticos; reformou pontualmente a Lei de Drogas (Lei 11.343/06), para inserir-lhe nova modalidade de delito equiparado ao tráfico;
- Modificou o regramento da execução penal em estabelecimentos penitenciários federais (Lei 11.671/08);
- Reformou a Lei 12.037/09, para instituir o Banco Nacional Multibiométrico e de Impressões Digitais;
- Alterou a Lei 12.694/12, para determinar a instalação, nas Justiças Federal e Estadual, de varas criminais colegiadas para o processamento e julgamento de crimes relacionados a organizações criminosas armadas;
- Alterou a Lei de Organizações Criminosas (Lei 12.850/13), para endurecer a execução de penas de condenados a crimes nela previstos e para reformar o regramento da colaboração premiada, bem como o da infiltração de agentes, instituindo a figura da infiltração de agentes de polícia por meio virtual.
Merecem especial destaque duas das mudanças aludidas no parágrafo anterior:
(i) a reforma da Lei de Improbidade Administrativa para admitir acordos (novo art. 17, §§ 1º e 10-A da LIA) já estava prevista no texto original do projeto anticrime e era, a nosso ver, um dos mais bem-vindos e ao mesmo tempo menos notados pontos daquele texto, porquanto contemplava uma antiga demanda de advogados que, acompanhando a evolução da operação 'Lava Jato' e de outras investigações recentes, apontavam a vedação a acordos na LIA como uma fonte de significativa insegurança jurídica para a cooperação com órgãos do Estado, que poderia eximir riscos de sanções econômicas baseadas na Lei Anticorrupção mas não aqueles baseados na LIA – há anos vínhamos alertando essa incoerência sistêmica a órgãos do Ministério Público Federal e Estadual, CGU, AGU e Poder Judiciário, e consideramos a medida um avanço importante para atender ao interesse público e ao interesse de empresas e empresários;
(ii) as alterações no regramento da colaboração premiada (novos arts. 3-A a 3-C, 4º, 5º e 7º da Lei 12.850/12), as quais abrangem o processo de negociação do acordo e diversas de suas implicações para colaboradores e para não-colaboradores, tendem a dar mais segurança jurídica para os acordos e vêm dirimir muitas dúvidas que, nos últimos anos, suscitaram polêmicas nos tribunais em vista do insuficiente – e por vezes equivocado – regramento legal existente, conforme também tivemos oportunidade de apontar em casos concretos e em debates com a comunidade jurídica e órgãos de persecução penal.
Os institutos de acordo e cooperação com o Estado, malgrado não sejam e não possam ser vistos como panaceia para solucionar todo e qualquer problema jurídico, constituem, ao mesmo tempo, parte essencial das políticas anticorrupção atuais do Estado brasileiro e importante estratégia de defesa para determinadas situações, e deve, portanto, merecer especial atenção de legisladores e tribunais para que apresentem a segurança jurídica necessária para que sejam incentivados e tragam benefícios ao interesse público e à iniciativa privada, a bem do desenvolvimento econômico e da justiça.
Fonte: Mattos Filho, em 26.12.2019