Por Natália Marques (*)
O início da vigência da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) em agosto de 2020 e os efeitos econômicos e sociais da pandemia da COVID-2019 são dois assuntos em evidência neste início de 2020. Agora, é interessante refletir como as regras da LGPD se aplicariam em alguns dos acontecimentos e práticas atuais.
A LGPD, seguindo tendência mundial das demais legislações sobre o tema, confere proteção especial aos denominados “dados sensíveis”, que são informações que, por sua própria natureza, geram a presunção de que apresentam maior potencial de serem usadas para discriminar os seus titulares. Entre esses dados sensíveis estão a orientação sexual, etnia, filiação sindical, opiniões políticas, religião e, principalmente, saúde, quesito este em que se enquadra a contaminação pelo novo coronavírus, demandando uma proteção legal especial para a pessoa infectada. De acordo com a LGPD, o acesso, o compartilhamento e a divulgação dessa informação para a atividade de tratamento de dados exige consentimento. As práticas atuais, no entanto, são fundadas nas exceções.
O Ministério da Saúde divulga todos os dias os números dos casos de coronavírus, sendo que tais números – com as respectivas informações sobre os infectados, mas que não são divulgadas ao público – são obtidos por meio da notificação compulsória que deve ser realizada pelas secretarias de saúde, baseada nos princípios de vigilância epidemiológica. Com a vigência da LGPD, a justificativa para compartilhamento desses dados, além de se pautar no cumprimento de obrigações legais e regulatórias, é baseada na necessidade de se tutelar a saúde por meio de procedimento realizado por autoridade sanitária (Art. 11, inciso II, alíneas “a” e “f”).
Embora a pessoa infectada não possa se opor ao compartilhamento de seu nome e demais informações ao Ministério da Saúde, é certo que o tratamento dos dados por parte da administração pública deve obedecer aos demais princípios da LGPD, como a divulgação, ao público, apenas dos números e da divisão dos casos por região do Brasil, e não das informações específicas daqueles com diagnóstico positivo e que possam, de alguma forma, servir para identificá-los, ainda que combinados com outros dados.
Da mesma forma, desde o início da pandemia, diversas pessoas conhecidas vieram a público divulgar seus diagnósticos em suas redes sociais, e outros tantos replicaram essas informações. A princípio, também não seria necessário que se requeresse o consentimento do titular para se endereçar ao seu diagnóstico, tendo em vista que a LGPD, em seu art. 7º, parágrafo 4º, dispõe que é dispensada a exigência do consentimento para os dados tornados manifestamente públicos pela própria pessoa (com a publicação nas redes sociais, por exemplo).
Outra questão interessante para análise é a divulgação por empresas, escolas ou estabelecimentos comerciais da presença de casos positivos do novo coronavírus entre os seus colaboradores ou frequentadores. Os estabelecimentos se sentem na suposta obrigação de divulgar essas informações com a intenção de incentivar aqueles que possam ter tido contato a buscar o próprio diagnóstico ou redobrar os cuidados para evitar a contaminação de outras pessoas.
Nesse caso, o compartilhamento da informação pode dispensar o consentimento do infectado porque a justificativa é a “proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro”, conforme dispõe o artigo 11, inciso VII da LGPD. Novamente, a dispensa do consentimento não significa a permissão para desobediência dos demais princípios da lei, dentre os quais se incluem os da finalidade e da necessidade.
Se a finalidade é informar as pessoas para que possam procurar o próprio diagnóstico ou adotarem medidas preventivas (como a quarentena voluntária), não é necessário que sejam divulgados o nome ou outras informações pessoais, além disso, o meio de divulgação não deve ser público a ponto de alcançar aqueles que não tiveram contato e para quem a finalidade que justifica o compartilhamento não se estende.
Outra hipótese interessante para aplicação da LGPD diz respeito aos estudos que são realizados por órgãos de pesquisa particulares e públicos com o objetivo de aprofundar os conhecimentos sobre a COVID-2019 e, nesse momento, buscar medicamentos e vacinas que possam ajudar a combater a infecção. Para que os estudos ocorram, é imprescindível que seja permitido o acesso aos dados sensíveis das pessoas infectadas, não apenas relacionados à própria existência da contaminação pelo coronavírus, como a outras enfermidades, histórico de saúde, idade, sexo, profissão e outras informações que de alguma forma auxiliem na compreensão dos desdobramentos da doença.
A LGPD prevê que, na realização de estudos em saúde pública, os órgãos de pesquisa poderão ter acesso a bases de dados pessoais, que deverá ser regulamentado pelas autoridades públicas, independentemente do consentimento do titular. O Ministério da Saúde, a princípio, pode compartilhar essas informações. No entanto, os dados, sempre que possível, devem ser anônimos ou apresentados com pseudônimos. Da mesma forma, a divulgação dos resultados do estudo ou da pesquisa não pode em hipótese alguma revelar dados pessoais.
Vale ressaltar que os direitos resguardados pela LGPD preveem que o indivíduo deve sempre ser informado da atividade de tratamento de seus dados, da forma e duração de tratamento, da finalidade, das pessoas com as quais os dados são compartilhados, da responsabilidade das pessoas envolvidas (em garantir a segurança das informações e evitar o vazamento dos dados) e de seus direitos (como, por exemplo, requerer que seus dados sejam tratados de forma anônima quando possível).
Por fim, cabe observar que a LGPD não se aplica ao tratamento de dados pessoais realizado para fins exclusivamente jornalísticos (Art. 4º, inciso II, alínea “a”), de modo que discussões relacionadas à divulgação, ao compartilhamento e à análise de informações sensíveis feitas por jornais, por exemplo, devem ter por fundamento os princípios previstos em outros diplomas legais, como o direito à imagem e à privacidade.
(*) Natália Marques é advogada especialista em direito empresarial no escritório de Ribeirão Preto, Dosso Toledo Advogados.