Por Patricia Peck (*)
Apesar da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) já ter quatro anos de existência desde sua promulgação em 2018, e que só começou a vigorar a partir de setembro de 2020, ainda há muitas dúvidas quando o assunto envolve harmonização com demais leis, especialmente no tocante à Lei de Acesso à Informação (LAI). É natural que haja dificuldades na interpretação e aplicação da nova regulamentação, pois além de serem normas complexas, envolvem um procedimento extremamente abrangente e importante - o tratamento de dados pessoais.
Mesmo que por convenção a orientação seja buscar uma interpretação mais holística e integral da legislação, adotando princípios de transparência e minimização de dados como forma de acomodar o interesse público e a proteção da privacidade do indivíduo, alguns órgãos governamentais têm usado a LGPD como justificativa para não ceder informações. Porém, ao negar o fornecimento desses dados, acabam indeferindo os pedidos que têm como base a LAI, regulamentação que estabelece o acesso à informação pública como regra, e o sigilo somente em casos de exceção.
Diante desses equívocos, a Controladoria-Geral da União (CGU) publicou um enunciado, informando que os artigos 3º e 31º da Lei de Acesso à Informação (LAI nº 12.527/2011) são claros quanto ao acesso nos quais deve prevalecer a privacidade das informações de pessoas. No texto, a CGU reforça que a LAI e a LGPD são “sistematicamente compatíveis entre si e harmonizam os direitos fundamentais do acesso à informação, da intimidade e da proteção aos dados pessoais, não havendo antinomia entre seus dispositivos”. Na declaração da CGU resta orientado que a LGPD não tem o condão de restringir o acesso à informação, é uma lei de proteção de dados pessoais e não de proibição de acesso a dados pessoais.
Para evitar que haja outras interpretações em desacordo com as normas, responsáveis do CGU que integram a Secretaria de Transparência e Prevenção da Corrupção (STPC) têm participado de reuniões com Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD) para o estabelecimento de agenda conjunta de fortalecimento de ações de transparência e acesso à informação, bem como de proteção de dados pessoais.
A expectativa é que o estreitamento da atuação de ambas as instituições contribua para a harmonização da aplicação da LAI e LGPD, numa parceria que contribua para a garantia dos direitos constitucionais regulados por essas leis.
No momento, está sendo estudado o estabelecimento de um acordo de cooperação técnica que envolve temas como: políticas de transparência e acesso à informação e de proteção de dados pessoais e da privacidade; atuação conjunta em casos de violação dos direitos fundamentais protegidos pela LAI e pela LGPD; tratamento dos dados pessoais segundo a LAI e a LGPD e orientação adequada aos órgãos públicos; e procedimentos de responsabilização previstos na LAI e na LGPD em casos de descumprimento dessas leis.
Assim, vale destacar que deve prevalecer o Princípio da Transparência relacionado à aplicação da LGPD no setor público e tomar como exemplo o governo europeu, que publica relatórios sobre tratamento de dados. Também faz parte das obrigações dos servidores públicos a criação de medidas técnicas e administrativas para a proteção de dados como senhas seguras e utilização de antivírus, além da própria disseminação de conhecimento sobre o assunto entre os colaboradores.
A regulamentação traz os mecanismos necessários para viabilizar o cumprimento do dever de transparência pública, ao requisitar a elaboração de Relatório de Impacto, conforme previsão do artigo 32 da LGPD, bem como a adoção de técnicas de anonimização e pseudoanonimização, previstos nos artigos 12 e 13, quando possível. Isso quer dizer que a simples negativa é uma resposta simplista que não atende a nenhuma das duas leis tampouco ao interesse público.
A nota técnica nº 46/2022/CGF/ANPD sobre a divulgação dos microdados do censo escolar e do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e a posterior publicação da NOTA de Esclarecimento INEP (SEI nº 3289150) no sítio eletrônico do instituto é um exemplo da importância do alinhamento desta questão e o seu impacto para toda a sociedade.
Com certeza a LGPD traz necessidade de ajustes e melhorias em todos os setores econômicos e em especial no âmbito da Administração Pública. Por isso, a própria ANPD publicou o Guia Orientativo sobre Tratamento de dados pelo Setor Público.
O uso dos microdados são essenciais para fins de pesquisa e para melhoria das políticas públicas no âmbito de todo ecossistema educacional. Não se pode simplesmente remover ou excluir o acesso aos mesmos. Neste caso devem ser compreendidos e aplicados os artigos 5º. 6º, 7, 11, 12, 13, 14, 23, 25, 29 e 30, onde o fio condutor envolve atender o princípio da minimização e a persecução do interesse público.
Quanto mais se puder priorizar a orientação para correta adequação à LGPD em harmonia com demais legislações, e utilizar inclusive o papel administrativo da ANPD, mais fortalecemos o eixo da mediação e da solução para atingir a conformidade da lei, inclusive nos órgãos públicos, lembrando que sem acesso aos dados é impossível realizar desenvolvimento econômico e social, motivo pelo qual esta garantia também está inserida nas premissas da LGPD, artigo 2º, incisos V e VI.
(*) Patricia Peck, PhD. CEO e Sócia fundadora do Peck Advogados, Professora da ESPM e Conselheira Titular do Conselho Nacional de Proteção de Dados (CNPD).
Fonte: Ryto, em 01.06.2022