Por André Castro Carvalho e Valdir Moysés Simão (*)
A Lei Anticorrupção (LAC) acaba de completar cinco anos e, com base na experiência do que estamos observando no mercado brasileiro durante esse período, queremos fazer uma reflexão que se relaciona com a evolução do ambiente de integridade no Brasil. Isso fez surgir o que estamos denominando de três “fases” de evolução dos programas de compliance: a primeira, formalista; a intermediária, de efetividade; e a mais recente, a cultural.
No início, com a publicação da LAC e do Decreto 8.420/2015, adveio a primeira fase dos programas de compliance. As empresas correram para se adaptar ao artigo 42 do decreto, e o foco aqui é, sobretudo, formalista: código de ética e conduta e políticas muito extensas, em linguajar técnico e muito similar ao das leis vigentes, procedimentos burocráticos de controle que mais parecem ser um compliance contábil e de exercício ticking box. A área de compliance, quando existente, é vista quase como uma fiscalizadora da atividade da empresa e se assemelha muito ao papel de um departamento jurídico, tendo que validar muitas decisões procedimentais internas. Nessa primeira fase, há um acúmulo de funções de compliance na área jurídica, sobrecarregando o gerente ou diretor jurídico e dificultando sua dedicação para o desenvolvimento da área de compliance da estrutura organizacional da empresa. A comunicação do programa é discreta e os treinamentos são pontuais e rápidos, frente à preocupação de não impactarem a produtividade dos empregados.
Com a evolução das operações da Polícia Federal, a partir de 2016 o compliance se generalizou no país, quando emerge a segunda fase dos programas. A efetividade dos mecanismos de compliance passou a ser valorizada, justamente para se evitar novos episódios de corrupção nas empresas, pois os controles até então existentes não estavam funcionando com o fim de prevenir a prática de ilícitos. O assunto definitivamente entrou na ordem do dia das organizações, de um lado, porque os acordos de leniência celebrados passaram a exigir o aprimoramento dos programas das empresas colaboradoras. Por outro, o mercado começou a requerer iniciativas similares para clientes e fornecedores (o famigerado due diligence que os fornecedores tanto temem).
Na busca da efetividade de seus programas, as empresas perceberam que necessitavam simplificar os documentos, trazer versões resumidas e mais interativas dos códigos de ética e de suas políticas (algumas até utilizaram história em quadrinhos ou gamificação), em uma linguagem mais direta e acessível aos colaboradores. Os procedimentos continuaram com certa burocracia, mas foram suavizados e dissociados de um mero compliance de controle em direção a um compliance de prevenção, muito embora os colaboradores cumprissem as regras, por vezes, por mera obrigação. O diretor/gerente de compliance ou integridade passa a ter mais autonomia e se desprender de uma função jurídica ou contábil, exercendo mais um papel de supervisor do que de validador de procedimentos. Reporta-se ao CEO da organização e começa a interagir com o Comitê de Auditoria e outros órgãos de administração da companhia. A comunicação começa a ser mais fluida e constante, por meio da intranet da empresa e de mensagens eletrônicas, e os treinamentos passam a ocorrer com maior frequência e maior duração, com a participação, às vezes, do próprio diretor ou gerente de compliance.
Só que a realidade das empresas atingidas pelas operações da Polícia Federal já era conhecida há mais de uma década pelas multinacionais, que também passaram por fortes crises por conta de atos de corrupção e suborno nos Estados Unidos ou na Europa. Elas também tiveram que reformular os seus programas de compliance em consequência de acordos celebrados com reguladores estrangeiros. Essas empresas multinacionais começam, então, a publicizar a sua experiência para o mercado brasileiro, seja por meio da mídia, ações de benchmark ou atuação em organizações sem fins lucrativos. Eis que desponta uma terceira fase de programas de compliance, que é a que estamos vivendo neste momento.
Aqui, os códigos de ética e conduta são interativos, por vezes no formato de FAQs (Frequently Asked Questions), ou veiculam exemplos reais de dilemas éticos passados pela empresa — algumas até mesmo estabeleceram código em formato de aplicativo de celular. As políticas e procedimentos passam a ter como foco a intenção da conduta do agente: por exemplo, o que importa não é o valor de uma refeição de negócios, mas, sim, a intenção de obter alguma vantagem indevida. Os colaboradores entendem a importância dos conceitos e cumprem as regras por acreditarem nelas, e não porque são impostas pela organização. Em outras palavras, as políticas têm como objetivo empoderar a primeira linha de defesa a tomar as decisões adequadas baseadas na sua própria percepção. A ética é internalizada como valor genuíno que estimula o cumprimento espontâneo das obrigações legais e normativas. A figura do chief compliance officer, agora com organograma e orçamento próprio (por vezes contando com compliance officers regionais), passa a ter interação constante com o Conselho de Administração da organização. A alta administração envolve-se no dia a dia do compliance e se observa, constantemente, o tone at the top por meio de mensagens nas mídias, em vídeos, ou em mensagens aos colaboradores e terceiros. Comunicação massiva e contínua passa a ser vista em todas as instalações físicas da empresa, com a utilização de totens, banners, folders, adesivos em elevadores e outras áreas comuns, wallpapers, prismas de mesas de reuniões, entre outros. Há processos de reciclagem e os treinamentos ocorrem constantemente e com maior carga horária, executados por empresas de treinamento ou treinadores profissionais externos.
Fato é que, até hoje, convivem harmoniosamente no Brasil essas três fases dos programas. A passagem de fase para fase não é simples e leva certo tempo: implica um amadurecimento de cada organização em relação à importância de um programa de compliance. Como um exercício de antever o que pode surgir no futuro, talvez tenhamos uma quarta fase muito em breve, oriunda dessa sinergia de empresas nacionais com as multinacionais. Significa que os próximos cinco anos da LAC, que veio para ficar, ainda serão de transformação e aprimoramento do ambiente empresarial no Brasil.
(*) André Castro Carvalho é professor de compliance no Insper e no Ibmec-SP. Pós-doutor pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) e pela Universidade de São Paulo.
(*) Valdir Moysés Simão é sócio do Warde Advogados e ex-ministro da Controladoria-Geral da União e do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, em 30.08.2018.