Por Marcelo Malheiros Cerqueira (*)
Entre 1720 e 1723, John Trenchard e Thomas Gordon publicaram um conjunto de ensaios de forma anônima, sob o pseudônimo de Catão. Com um estilo elegante e arrojado, as chamadas “Cartas de Catão” abordaram temas variados, desde política até religião. Seu principal legado, porém, foi a oposição à corrupção do governo inglês, a crítica à arbitrariedade do poder e a defesa de uma ordem fundada na harmonia entre a liberdade privada e política dos cidadãos.
O conjunto de ideias defendidas nas “Cartas de Catão” foi uma das principais fontes de inspiração para os colonos no movimento pela independência dos Estados Unidos da América. O êxito da revolução americana, por sua vez, consagrou os ideais que lhe eram subjacentes para a prosperidade, notadamente os de liberdade, igualdade, equilíbrio dos poderes e Estado de Direito.
Voltemos nossas atenções para o momento atual brasileiro. Nos últimos anos, o trabalho desenvolvido no bojo da operação Lava Jato escancarou a corrupção envolvendo o alto escalão dos poderes. A sociedade logo passou a correlacionar os péssimos índices econômicos e sociais com parte das nefastas consequências da corrupção política. Não por outra razão, a corrupção chegou a ser apontada, no final de 2017, como o inimigo número um da sociedade brasileira.
O que não pode passar despercebido é que o problema da corrupção, tal como identificado pelo brasileiro, vai além da sua acepção técnica-jurídica. Nesta, a corrupção é vista meramente como uma patologia individual, cujo enquadramento como crime pelo Direito Penal tem como baliza o abuso do poder público para fins privados.
Em sentido diverso, os antigos empregavam a palavra corrupção para descrever um processo tido como natural de degradação das sociedades. Em Maquiavel esse conceito é assentado em bases morais-sociológicas, equivalendo à ruptura entre uma ordem legal e o que se concebe como “legítimo” do ponto de vista ético ou moral.
Esse sentido moral-sociológico da corrupção, como explica o professor espanhol Eloy García, se caracteriza quando os governantes não obedecem às regras que proclamam como imperativas e, a despeito disso, não sofrem a reprovação moral dos governados. Estes, ao contrário do que se deveria esperar, também buscam os meios para fazer o mesmo que aqueles de forma impune. Toda a sociedade, enfim, não acredita nem se vincula às regras de seu ordenamento jurídico.
No Brasil, a Constituição de 1988 cuidou de inaugurar uma ordem democrática fundada em valores como o Estado Constitucional, a separação dos poderes, o pluralismo e a proteção de direitos fundamentais. Ocorre que as práticas sociais e a ação oculta – ou nem tão oculta assim – das forças de poder levaram à subversão dos princípios democráticos, propiciando a dominação social e política.
Durante muito tempo, uma população resignada com esse modo de ser aderiu às engrenagens ilícitas do poder, reproduzindo-as de cima para baixo e sob a guarida do “jeitinho brasileiro” em sua faceta mais sombria. Assim, o comum no Brasil tornou-se o loteamento de licitações, a sonegação de impostos, o desvio de verbas públicas, a compra de votos, entre tantas outras condutas pouco republicanas.
A partir de 2013, o cidadão brasileiro deu um passo para fora da bolha de apatia cívica e começou a demonstrar seu inconformismo em face do estado social existente.
Gradativamente, passou a assimilar que a generalização das práticas corruptas, no sentido jurídico-individual, levou ao declive ético da sua sociedade. Daí a explicação para a corrupção ter sido alçada a uma das maiores preocupações atuais: o reconhecimento de que a velha ordem, fundada em um flagrante descompasso entre o comando legal e o que se entende como “legítimo”, necessita ser substituída.
Nessa conjuntura é que nos vemos carentes de inspirações ideológicas. O Brasil, como bem registra Francisco Bosco, “é um país onde o concreto sempre venceu o abstrato”. Padecemos de ideias tão fundamentais como as que levaram os colonos da Nova Inglaterra a se insurgirem contra o governo inglês e a marcarem o nascimento de uma nação economicamente próspera. E assim deixamos a nossa história se fazer pela sucessão de fatos e acontecimentos relevantes, mas sem a efetiva construção de uma forma de organização social moralmente alinhada às suas regras.
Em meio a uma sociedade plural e politicamente indócil, o que temos às vésperas de mais um processo eleitoral é, lamentavelmente, a cega polarização entre “direita” e “esquerda”. São as eleições marcadas pelo “voto útil”, em que uns votam contra os candidatos dos outros abrindo mão, aqui e ali, da ficha-limpa ou de princípios democráticos. A todos, cabe o alerta: não podemos nos resguardar contra a arbitrariedade do poder se os nossos costumes estiverem corrompidos. É hora de lutarmos por um consenso em torno de princípios básicos para nossa organização, não abrindo mão, em momento algum, da nossa integridade.
(*) Marcelo Malheiros Cerqueira é mestre em Direito pela UFMG e em Direito Constitucional pela Universidade de Sevilha – Espanha. Procurador da República.
Fonte: O Estado de S. Paulo, em 06.10.2018.