Brasil não tem lei penal contra crime de corrupção, apesar de recomendação da ONU; reclusão hoje ocorre apenas em casos envolvendo funcionários públicos
A Lava Jato revelou um clássico: o executivo que acerta com um fornecedor não pelo melhor preço ou pela qualidade do serviço, mas pelo ‘incentivo financeiro’ que recebe por fora, mais conhecido como propina.
O que nem todos sabem, no entanto, é que há dois pesos e duas medidas para julgar esse delito, a depender do envolvimento ou não de um funcionário público no conluio. Se trabalhar para o governo, por exemplo, a Justiça pode acusar o executivo de corrupção passiva ou ativa, com pena de prisão de até 12 anos.
Já se todos os integrantes do esquema pertencerem a empresas particulares, não existe crime. Como a legislação brasileira não traz um tipo penal para corrupção na iniciativa privada, o executivo não corre o risco de acabar na cadeia. Pela corrupção em si, ele pode pagar uma multa, no máximo.
Para chamar atenção a esse fato, um advogado de São Paulo, Conrado Gontijo, realizou o estudo ‘O Crime de Corrupção no Setor Privado’, no qual aponta para a necessidade de mudanças na legislação.
“Se os escândalos com a Petrobras ocorressem em uma empresa privada, não haveria um dispositivo penal que tratasse especificamente das negociatas dos funcionários”, afirma. “Hoje, só seria possível estabelecer sanções contra fatos laterais, como lavagem de dinheiro”.
Gontijo lembra que a convenção da ONU sobre combate à corrupção, assinada em 2003 e que tem o Brasil como signatário, recomenda a inclusão da corrupção privada na legislação penal dos países.
Para o advogado, a criação de um tipo penal para a corrupção privada preencheria uma “lacuna na legislação brasileira”, desestimulando de maneira mais firme “um comportamento que é comum e traz muito prejuízo”.
“Na esfera privada, pagar para obter vantagem dificilmente resulta em sanção no âmbito criminal, apenas no civil, onde a conta muitas vezes fica barata”, avalia.
O consultor da Transparência Internacional Guilherme Donegá ressalta que a noção de que a corrupção se restringe à esfera pública mudou na medida em que o setor privado deixou de ser considerado “sempre uma máquina de eficiência”.
A organização, que lançou em fevereiro o pacote ‘Novas Medidas Contra a Corrupção’, em parceria com a Escola de Direito da FGV, engloba o setor privado ao conceituar esse ato: “É o abuso do poder confiado (a alguém), para ganhos privados”, define Donegá. “Isso se aplica, por exemplo, ao comprador de uma empresa que abusa do poder confiado pelo seu empregador para ganhar algum suborno de um fornecedor”.
O exemplo do consultor acontece com frequência no Brasil. Segundo pesquisa da PwC divulgada neste ano, metade das empresas brasileiras sofreu algum crime econômico nos últimos dois anos. O principal tipo sofrido nesse período foi a fraude em compras, com 34% dos casos registrados pelas empresas no País.
Especialista em Direito Penal Empresarial, Rogério Taffarello relata que já se deparou ao longo da carreira com casos típicos de corrupção privada.
“O que é propina em âmbito público, é chamado de pagamento de ‘bola’, no jargão comercial”, conta ele, hoje sócio do escritório Mattos Filho.
Na prática, o que se faz geralmente é tentar enquadrar o delito como estelionato, explica o advogado. “Mas é complexo colocar nessa categoria, porque é preciso apresentar muitos elementos”.
Taffarello conta que o debate sobre a tipificação da corrupção privada cresceu nos últimos cinco anos. Ele observa que as investigações de casos de corrupção na Fifa, CBF e COB, que são instituições privadas, ajudaram a colocar o assunto mais em evidência.
Para o advogado, os crimes de corrupção no setor privado devem passar a constar na lei brasileira “daqui a, no máximo, duas legislaturas”.
Tendência internacional. Gontijo também acredita que esse crime será tipificado em breve aqui, acompanhando o que vem acontecendo no exterior.
“É incoerente punir apenas na esfera pública, já que se trata de uma mesma conduta, mas praticada no setor privado. Na legislação inglesa, as penas e os procedimentos são iguais para todos os casos”.
A Inglaterra foi o primeiro país a implantar leis criminais contra a corrupção no setor privado, conta ele. Desde 1906, a legislação de lá trata juridicamente da mesma maneira os atos de corrupção de agente públicos e privados. França e Alemanha também têm esse crime tipificado há mais de 100 anos.
A Itália tipificou esse crime em 2002, e é considerada por Gontijo um modelo exemplar para o Brasil. Segundo ele, o objetivo lá é a proteção do patrimônio, ou seja, tem que ser comprovado o prejuízo do delito. “A esfera criminal traz sanções mais fortes, então deveria ser reservada aos casos mais graves. Assim se cria um referencial objetivo para punir”, analisa.
No Brasil, atualmente há dois projetos de lei no Congresso Nacional que pretendem estabelecer um tipo penal para a corrupção privada. Um é de autoria do senador José Sarney (MDB-AP), que propõe um novo Código Penal. Outro, do deputado federal João Derly (REDE-RS), insere o tipo dentro da Lei de Propriedade Industrial (LPI).
Segundo os especialistas, ambas as propostas apresentam problemas. Enquanto o texto de Sarney é criticado por não definir bem a conduta a ser punida, a proposta de Derly seria limitada em excesso pelo escopo da LPI, restringindo a incidência dessa lei ao âmbito industrial.
Fonte: Estadão