Por Mariana Oliveira
"Sem racionalizar o sistema de combate à corrupção, vamos ter ciclos de glória e desgraça intermináveis no Brasil — talvez mais desgraça do que glória." É o que defende o advogado especializado em Direito Empresarial Walfrido Jorge Warde Júnior. Já conhecido por criticar a relação entre empresa e Estado no país, ele lança um livro sobre o tema onipresente no período eleitoral deste ano: combate a corrupção. Em O Espetáculo da Corrupção - Como um sistema corrupto e o modo de combatê-lo estão destruindo o país Walfrido afirma que a maneira como estamos enfrentando o tema traz efeitos colaterais tão danosos como o próprio problema.
Para o advogado, presidente do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (Iree), a demonização da política, a destruição das empresas, a espetacularização e a desmoralização das instituições são consequências de um modelo anticorrupção que investiu em meios de detecção de irregularidades, com diminuição da impunidade, mas não é eficiente em acabar com a corrupção na raiz ou manter a saúde de empresas de setores importantes da economia no país.
Ele afirma que a politização do combate à corrupção, que tem sido pauta tanto para os políticos quanto para a própria população, é relativa. É que, mesmo depois de tantos debates sobre o assunto, as relações entre empresas e Estado não foi regulada. O que se entende por corrupção no Brasil é legal e feito à luz do dia nos Estados Unidos, por exemplo, diz Warde, em entrevista à ConJur.
"A nossa Lei de Organização Criminosa é de certa forma é uma costela da Rico, a lei anti-máfia norte-americana dos anos 70. Importamos esse modelo que funciona magnificamente bem para os Estados Unidos, mas que destrói países como o nosso em que não há regulação da prática do lobby", afirma.
Leia a entrevista:
ConJur — O que fez o combate à corrupção ser tão danoso ao país quanto a própria corrupção?
Walfrido Warde — Anunciei esse problema no começo de 2015, junto com dois outros colegas, o Gilberto Bercovitch e o José Francisco Siqueira Neto. Propusemos escrever um livro chamado Plano de Salvamento do Projeto Nacional de Infraestrutura. Ali, dizíamos que o aparecimento das duas leis que instrumentalizavam um novo combate à corrupção, trariam uma inflexão ao combate à corrupção no Brasil: a Lei Anticorrupção e a Lei de Organização Criminosa, que trouxe em seu bojo uma série de instrumentos de coleta de provas, como a delação premiada.
ConJur — Quais as consequências negativas dessas leis?
Walfrido Warde — Elas produziram uma revolução na detecção de ilícitos e na concreção de decisões judiciais de combate à corrupção. Promoveram uma diminuição da impunidade, mas causaram um profundo impacto no tecido social, no sistema político e nos sistemas econômicos no Brasil. Ao mesmo tempo, foram incapazes de acabar com a fábrica de corrupção. Dizíamos isso lá atrás. E propusemos lá atrás, não com a mesma elaboração desse livro, que se não fizéssemos alguma coisa para acelerar ou criar uma solução de continuidade para empresas envolvidas em corrupção, perderíamos todo o setor de infraestrutura do país.
ConJur — O livro fala em soluções?
Walfrido Warde — Primeiro, uma regulação do lobby diferente da que estamos fazendo aqui, que é simplesmente cadastrar o lobista no TSE. Não basta saber que o fulano é lobista e que atua para o setor de fumígenos. Precisa primeiro criar uma regulação de lobby pré-eleitoral, financiamento de campanha, uma legislação de lobby eleitoral que limite a atuação do poder econômico, mas não a afaste, porque as empresas vão arranjar um jeito de influenciar governos, não tem jeito. E como está, com financiamento de pessoa física e financiamento estatal, você onera demais o contribuinte de um lado e do outro lado você não impede que o poder econômico se infiltre nos governos, porque o chefe da empresa continua a doar como pessoa física.
ConJur — É preciso regular também a frente dos parlamentares?
Walfrido Warde — Sim. As organizações paralegislativas que atuam no Congresso Nacional, são quase 400 na legislatura que se encerra agora em 2018, e que são submetidas a uma única regra de financiamento privado. Ou seja, elas não são financiadas pelo dinheiro público. Sob essa perspectiva elas são um portão enorme aberto para a corrupção. Se a gente olhar com lupa ali, talvez não pare nenhuma de pé.
ConJur — E sobre leniência?
Walfrido Warde — Precisamos de um guichê único, de uma autarquia, que comece a pensar a política nacional anticorrupção, que sirva para leniência das empresas. Hoje temos uma síndrome de dupla personalidade em matéria de leniência, eu não sei com quem eu tenho que falar, se é com a CGU, se é com a AGU, se é com o Ministério Público, se é com o TCU, se é Cade, se é com a CVM, se é com o Banco Central.
ConJur — Essa mesma autarquia poderia regular o sistema de combate à corrupção?
Walfrido Warde — Sim. Não podemos submeter um país a uma regulação de corrupção que seja subjetiva e realizada por juiz de primeiro grau. Não podemos imaginar que um juiz de primeiro grau, por mais voluntarioso que seja, por mais honesto, eficiente e inteligente que seja, sozinho possa fazer política nacional anticorrupção. Não faz sentido algum, não é essa a função da judicatura.
ConJur — Esse discurso anticorrupção na política para angariar votos é vazio?
Walfrido Warde — Sim. Com o modelo de financiamento de campanha que temos no Brasil e que tínhamos antes da ADI 4.650 [ação na qual o STF declarou inconstitucional o financiamento eleitoral por empresas], por que uma empresa doaria para todos os candidatos, da extrema esquerda à extrema direita? Para não errar. Por que uma empresa faria doação para candidatos a um pleito eleitoral, que, uma vez eleitos, seriam fundamentais para passar leis no ongresso favoráveis a si? Ou celebrar contratos administrativos consigo?
O discurso di spurgo de imundices é hipócrita. Sabemos como a política é financiada nas grandes democracias continentais, não tem muito para onde escapar: é financiada por empresas e por grupos de pessoas da sociedade civil. E se nos autoimpusermos um moralismo muito grande, corremos o risco de que a política venha a ser financiada pelo crime organizado. Aliás, é provável que isso já aconteça. E todos os políticos brasileiros sabem disso. Os que entraram agora e nunca foram políticos ou tiveram cargo público ainda podem se valer do benefício da dúvida, porque talvez não saibam como o sistema funciona. Muito embora qualquer pessoa minimamente instruída maior de 18 anos no Brasil devesse saber.
ConJur — E qual o problema do sistema anticorrupção atual no âmbito das eleições?
Walfrido Warde — O tema foi politizado, e hoje é a base dos juízos dos eleitores e da profunda renovação que eles pretendem fazer na política. Mas essa politização pode ser relativizada, porque tudo ou quase tudo o que vimos e que entendemos como corrupção no Brasil, nos Estados Unidos, um país onde o lobby é regulado, acontece normalmente, à luz do dia.
ConJur — Pode dar um exemplo?
Walfrido Warde — Lá existem três formas de financiar campanhas: uma por meio de doações até US$ 200, outra por meio de fundos que congregam dinheiro de vários grupos de interesse comum da sociedade civil, chamados Political Action Committees, os PACs, e, em terceiro lugar, com dinheiro próprio do candidato. Na última eleição para presidente, a candidata Hillary Clinton captou US$ 1,4 bilhão, sendo que só 16% vinham de pequenos doadores, até US$ 200 dólares. O resto veio de PACs, desses fundos. Trump arrecadou US$ 1 bilhão, sendo 26% advindos de pequenos doadores, o resto todo da comunidade empresarial. Mais do que isso, você tem nos Estados Unidos, desde 2010, os Super PACs, que são fundos cuja criação se deve a uma decisão da Suprema Corte em dois processos de 2010, que permitem que grupos da sociedade civil organizarem fundos de captação de recursos para financiar a política entre mandatos.
ConJur — E o que são esses fundos de captação?
Walfrido Warde — É dinheiro que entra na veia dos partidos e dos políticos entre os mandatos. E por que as empresas e os grupos de pressão fazem isso? Justamente para convencê-los a agir em seu favor. A democracia de tipo norte-americana é uma democracia que entende que esse tipo de lobby é benfazejo e ele leva à prevalência dos interesses mais importantes e melhores em detrimento dos piores. É uma visão romanceada de algo que poderia ser considerado brutalmente imoral, mas o fato é que lá o que se fez aqui é considerado lícito.
ConJur — Isso quer dizer que o modelo americano é o que devemos seguir?
Walfrido Warde — É um modelo que não impõe freios suficientes ao poder econômico. Mas é possível criar modelos intermediários entre o nosso de absoluta desregulação ou de frouxa regulação e o deles, de absoluto permissivismo. Mas o fato é que tudo o que se fez aqui sob o rótulo de corrupção, lá se faz dentro da lei. Tudo o que aqui levou a prisões e à destruição de empresas, lá se faz dentro da lei. E o modelo de combate à corrupção que os Estados Unidos exportam é um modelo que é destrutivo para países como o nosso em que o lobby não está devidamente regulado.
ConJur — Nós seguimos o modelo anticorrupção norte-americano?
Walfrido Warde — Na realidade, todo mundo. Desde 1977 os Estados Unidos exportam seu modelo de combate à corrupção por meio de uma leizinha chamada FCPA, The Foreign Corrupt Practices Act, que diz que todas as empresas americanas ou qualquer pessoa que tenha relação de negócio com os Estados Unidos se submete a um regime de integridade. Esse modelo foi repristinado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e todos os países membros se submetem a ele, o Brasil também.
O Brasil fez mais do que isso: internalizou duas leis que, de certa forma, repetem esse modelo, que são as leis de Organização Criminosa e Anticorrupção. Aliás a nossa Lei de Organização Criminosa é, de certa forma, uma costela da Rico, a lei antimáfia dos anos 1970 dos EUA. Importamos esse modelo que funciona magnificamente bem para os Estados Unidos, que tem uma legislação de lobby com a qual se permite fazer tudo o que aqui se fez. Mas, como não tinha lei de lobby aqui, é crime. Basicamente importamos um modelo de honestidade, de integridade, que vem do país do lobby, mas que destrói países como o nosso em que não há regulação da prática.
ConJur — O que acha da ideia dos Whistleblowers, denunciantes de dentro de empresas e organizações privadas? Funcionaria no Brasil?
Walfrido Warde — O que esse modelo faz é lidar com um sistema de incentivos e estímulos. É o futuro da regulação: ter uma lei que estimule estruturalmente condutas desejáveis sob o ponto de vista do legislador. Então no que o whistleblower é diferente do delator, do colaborador? Ele é um terceiro que não praticou o crime, mas que tem conhecimento do crime e que recebe um benefício para denunciá-lo, recebe dinheiro eventualmente.
ConJur — É o velho procura-se/recompensa?
Walfrido Warde — Exatamente. E é um instrumento muito característico da pragmatização da legislação penal do mundo inteiro. E evidentemente da hipertrofia dos tentáculos do Estado. O Estado não é capaz de fiscalizar, de olhar tudo por mais que ele tente e seja competente em penetrar nas vidas privadas. Mas, além disso, por meio desses subterfúgios, ele captura agentes privados. A delação premiada é um instrumento nesse sentido, mas com ela há um alinhamento. Estamos falando de um beneficiário, de um partícipe do crime. E aí obviamente para diminuir a pena, ele colabora. O whistleblower não, ele não está debaixo da malha do Estado, não está capturado pelo Estado, mas o Estado oferece um benefício a ele caso ele denuncie alguém, traga provas contra alguém. Esse é o caminho, vamos caminhar para isso.
ConJur — Mas como podemos caminhar para isso se o próprio instituto da delação premiada ainda não está bem delineado no Brasil? O depoimento do delator acaba virando a própria prova, e não "meio de obtenção de prova", como definiu o Supremo.
Walfrido Warde — A delação premiada é uma técnica de coleta de prova. A prova não é a colaboração premiada, é o que o colaborador vai trazer, que é a agenda dele, a passagem, a gravação, o documento, o contrato, o recibo, a nota fiscal, a foto... Mas, de fato, temos colaborações premiadas absurdas, tanto porque o colaborador não entregou as provas que prometeu quanto porque o Estado, submetido a uma pressão e senso ético da população, não entregou o benefício prometido. O colaborador foi lá e entregou as provas, mas, como foi considerado um vilão muito grande pela população, o Estado se arrependeu. Como nada no Brasil é levado muito à sério, o Ministério Público celebrou acordos de colaboração com pessoas que não entregaram uma prova sequer e foram beneficiadas. Ao mesmo tempo, não proveu o benefício contratado para pessoas que deram muitas provas.
Mais dramático do que tudo isso é que o nosso modelo garantista de persecução penal foi vulnerado por provas muito frouxas trazidas do contexto da delação premiada. Muito frouxas e de origem questionáveis, porque, à medida que acopla a delação à prisão cautelar, cria um incentivo muito grande para o aparecimento de provas às vezes insustentáveis e com efeito em cascata, com gente sendo investigada, presa e destruída moralmente e economicamente com base, às vezes, em factoides. Então, de fato, temos que repensar tudo isso. E isso tudo que vimos tem um brutal impacto nas eleições de 2018.
ConJur — E de que forma a regulamentação do lobby poderia acabaria com a corrupção?
Walfrido Warde — A ideia de dar uma carteirinha para o lobista é importante, mas não isso não tem a ver com regulamentação do lobby. Tem a ver com fluxo de dinheiro e fluxo de influência entre empresa e setores da sociedade civil de um lado e Estado do outro.
ConJur — Mas permitir isso poderia acabar com a corrupção?
Walfrido Warde — Na realidade racionalizaria essa relação entre Estado e grupos de pressão da sociedade civil que vai sempre existir. O que a gente chama de corrupção é uma patologia nessas relações. Elas sempre vão existir, mas nesse momento estão submetidas a um ponto de interrogação do tamanho do Everest. O que é lícito e o que é ilícito? Do mesmo jeito que é ilícito uma empresa doar para um candidato, não é ilícito uma empresa financiar frentes parlamentares no Brasil hoje. Aliás, essa é a regra. A frente parlamentar da agricultura, a frente parlamentar da bala, a frente parlamentar dos autistas, a frente parlamentar do agronegócio, e aí por diante. Tudo isso basicamente são grupos de pressão da sociedade que agem sobre parlamentares para que eles criem leis em seu favor.
ConJur — Em 2015, quando vocês publicaram o primeiro livro, a “lava jato” já era a operação anticorrupção mais festejada do mundo?
Walfrido Warde — Sim, alguns representantes da força-tarefa já diziam que pouco importava se tivessem que destruir empresas para refundar o ambiente empresarial no Brasil e que também não era a função deles pensar e fazer política, eles tinham que cumprir a lei. Como se cumprir a lei não fosse de certa forma fazer política, pelo menos de instrumentalizar uma política existente. Lá atrás a gente já tinha dito que não ia dar certo e esse livro é a constatação disso. Se esse combate é um dos motivos pelos quais ainda não fechamos a fábrica de corrupção, por outro lado nós também não demos caminhos para as empresas envolvidas em corrupção sobreviverem.
ConJur — Como a operação pode ter colaborado com isso?
Walfrido Warde — Os números da "lava jato" são incríveis. Se você olhar, estamos falando de milhões de empregos perdidos. A Petrobras perdeu 259 mil postos de emprego; a Camargo Correa, 2,5 mil; Andrade Gutierrez, 95 mil a Odebrecht, 140 mil; Queiroz Galvão, 13 mil; OAS 80 mil; Engevix 17 mil; e Promon, 380 dos seus 760 empregados. A Petrobras, que é a vítima dessa história, perdeu R$ 400 bilhões em valor de mercado. Nenhuma empresa resiste a três anos nas manchetes policiais. É um vaticínio.
ConJur — Quais são os principais erros da operação?
Walfrido Warde — Quando falamos de "lava jato", não estamos falando da Polícia Federal, do Judiciário, do Legislativo ou do Executivo. Estamos falando de todo mundo, da articulação de uma série de órgãos e de iniciativas do Estado. Estamos falando das duas leis que foram promulgadas em 2013, de iniciativa do Legislativo, e da falta de regulamentação dessas leis, ou seja, também a omissão do Legislativo. Estamos falando da situação em que essas leis colocaram os juízes — eles tinham uma posição equidistante entre o autor e o réu, ouviam o promotor e a defesa, ponderavam sobre as provas e os argumentos do acusador e as provas e os argumentos do réu.
ConJur — O que mudou?
Walfrido Warde — A Lei de Organização Criminosa colocou o juiz no centro da instrução do processo penal. Ele defere busca e apreensão, prisão cautelar, escuta ambiental, grampo telefônico, grampo telemático, e aí por diante. Ele se mete no meio da investigação e, ao se meter no meio da investigação, acaba se emporcalhando nela, é natural. Ele acaba se envolvendo e se apaixonando pela investigação. É óbvio que quando ele recebe a defesa do réu ele já está convencido de que o cara é culpado. E aí começa a olhar aquelas provas, interpretar e valorar aquelas provas sob o ponto de vista do acusador. Mas, pior do que isso, como ele, magistrado, não tem uma concepção política adequada e determinada pela lei sobre o que é certo e o que é errado nas relações entre Estado e empresa, porque nós não temos legislação de lobby, nem pré-eleitoral nem pós-eleitoral, ele olha para aquilo como se tudo fosse corrupção e acha que tem uma função somente técnica, que é aplicar a lei. O que não é verdade. Tudo o que ele faz, todos os atos do processo que ele pratica, tem consequências sociais, políticas e econômicas. Nós não temos unicidade e articulação entre os órgãos que compõem a parte de combate à corrupção. Esse é o problema da "lava jato".
ConJur — A corrupção descoberta na "lava jato" de fato foi o maior esquema de corrupção da história, como alguns dizem?
Walfrido Warde — Não. Essa é uma afirmação não científica. O que tivemos foi a instrumentalização revolucionária do combate à corrupção por meio de duas leis, sobretudo a de Organização Criminosa, porque ela trouxe um instrumento poderosíssimo: à medida que posso te prender cautelarmente para você não se livrar de provas e ainda te digo que você pode sair da prisão se trouxer provas contra você e contra o Fulano, eu revoluciono as técnicas de detecção do ilícito. Só que isso sem todo o resto que não fizemos, realmente produz um escândalo de prisões e de disrupção na atividade econômica que nos trouxe a 14 milhões de desempregados.
ConJur — Podemos culpar apenas o sistema anticorrupção por isso?
Walfrido Warde — Não, existem outros fatores. Mas ele ajudou, sim, a destruir todo o setor de infraestrutura do país e setores econômicos conexos, a imputar a recessão que nós nos encontramos e, pior do que isso, a falsear o juízo sobre uma necessidade de renovação política. Não temos a necessidade de renovar a política, as pessoas são as mesmas. Pode mudar de nome, pode mudar de endereço, mas a base cultural, ética e moral, das pessoas no país são as mesmas. O que precisamos é arrumar a legislação do país, racionalizar o combate à corrupção. Sem isso, vamos ter ciclos de glória e desgraça intermináveis no Brasil, talvez mais de desgraça do que de glória.
ConJur — Se tivéssemos uma mudança no sistema de combate à corrupção, como a população entenderia?
Walfrido Warde — A população precisa ser instruída pela grande imprensa. Não debatemos a reforma política no Brasil. Temos 500 e tantos anos de existência como país, temos uma Nova República que acabou de acabar. Vai acabar em 2018, como acabou a Primeira República italiana, foi para a segunda república italiana, a nova República acaba agora em 2018, já tem data marcada para morrer. Ela foi destroçada assim como o seu projeto democrático, que também foi destroçado justamente porque só paramos para pensar em políticas, em disciplinas jurídicas da política no começo, em 1988, quando criamos a Constituição. Depois disso, demos de costas para a política e achamos de alguma forma que não era necessário aprimorar aquele modelo político do país.
ConJur — O que essa inércia causou?
Walfrido Warde — Criamos uma democracia que passou a ser financiada pesadamente por empresas. Oficialmente e oficiosamente, sem nenhuma regra. O cara podia doar muito dinheiro, tinha empresa que podia doar 100, 200, 300 milhões de reais. Doaram mais do que distribuíram de dividendo para os seus acionistas, que tinham bancadas inteiras do Congresso. Que se engajaram em esquemas de gestão privada da política do país. Iam lá, contratavam com o poder público, recebiam propina, colocavam um pedaço no bolso, superfaturamento, outro pedaço, voltavam e doavam para agentes públicos para que eles os beneficiassem de volta. Deixamos o sistema político brasileiro ao “Deus dará”.
ConJur — Como fazer para que as empresas envolvidas em corrupção sobrevivam com saúde financeira se os grandes acionistas da maioria delas são pessoas físicas?
Walfrido Warde — Somos diferentes dos Estados Unidos nesse ponto. Aqui temos acionista controlador que normalmente é majoritário ou é totalitário, enquanto nos EUA não tem controlador determinado. A maior parte das companhias de lá tem controle disperso, pulverizado. E o controle efetivo é gerencial, é a administração que manda na empresa. Então, se você tem um ato de corrupção, demite a administração inteira, contrata uma administração nova, e com isso muda a cultura da empresa. No Brasil, como demitir o controlador? Em alguns casos, temos que determinar uma transferência de controle. É uma das sugestões do livro. Ou então a alienação de ativos. Você precisa diminuir o potencial ofensivo, a capacidade de corromper daquele controlador. É o que o livro sugere em algumas situações.
ConJur — E como evitar que as empresas fiquem mais preocupadas em obedecer ao compliance do que lucrar e gerar empregos, por exemplo?
Walfrido Warde — Essa cultura do compliance produz um efeito colateral muito negativo, que é o engessamento das empresas. Você começa a ter compliance que atrapalha a atividade empresarial, tem programas de integridade muito rígidos. Por outro lado, temos um programa de compliance ligado à Lei Anticorrupção que se remete a uma disciplina jurídica da política, ou seja, das relações entre Estado e empresa, que é frouxa, que é tão insubsistente como a nossa. Todo o modelo está pervertido. Eu vou detectar um ilícito no fim do dia, lá na ponta, que não existe, ou que não deveria existir. Como é que hoje o presidente de uma multinacional vai permitir que o seu diretor de relações institucionais converse com um deputado sobre uma lei qualquer que seja útil para o seu setor? É uma conversa amedrontadora. O que é certo e o que é errado nessa conversa? Essa empresa poderia, por exemplo, mandar passagens para o deputado aprender alguma coisa que seja útil para formar a sua reflexão, ou melhor, poderia contratar estudos para ajudar o deputado, ou o conjunto de deputados a refletirem sobre aquele assunto? Não sabemos. Fizemos essa zona, mas esquecemos a lição de casa. É espetáculo de fogos de artifícios antes do ano novo.
(*) Mariana Oliveira é repórter da revista Consultor Jurídico.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, em 28.10.2018.