Por Rodrigo Pironti (*)
Normas gerais são normas que transcendem às pessoas políticas da República brasileira, que não se confundem com lei federal, estadual ou municipal[1]. São normas, portanto, editadas para unificação de determinado tema, sem, contudo, exauri-lo, deixando as especificações temáticas a cargo das normas especiais instituídas de acordo com as peculiaridades de cada ente. São, portanto, normas abertas, que traçam diretrizes.
Em matéria de licitações e contratos, a Lei Federal 8.666/1993 é norma geral. Assim, justamente diante de sua natureza geral, é o diploma responsável por determinar as balizas e diretrizes mínimas a serem seguidas em um processo licitatório. Dentre essas balizas está a determinação expressa de que a licitação será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.
Aos princípios acima elencados, especialmente o da moralidade e da probidade administrativa, por serem normas gerais de licitação, devem observância os demais entes políticos. Não sem razão, são justamente esses princípios que fundamentam os atos normativos e leis especiais, em âmbito estadual, distrital e municipal, que têm causado tanta polêmica recentemente, já que são diretrizes básicas de integridade a serem seguidas em processos licitatórios e contratações públicas.
Diante desse cenário, passo, então, a analisar a primeira possível polêmica: a inconstitucionalidade formal de instrumentos normativos que exigem programas de compliance nas relações contratuais com a administração pública.
Por respeito ao debate, aqueles que defendem a inconstitucionalidade, o fazem aventando que a exigência constante nesses instrumentos estaria violando a competência privativa da União para dispor sobre normas gerais de licitações e contratos, disciplinada no artigo 22, inciso XXVII, da Constituição da República de 1988. Isto é, bradam que as inovações normativas estariam criando uma condição especial mais restritiva à assinatura de contratos administrativos, o que somente poderia ser veiculado por meio de norma geral[2].
Ora, com todo acato, a exigência de programas de compliance nas relações contratuais com a administração pública não possui nenhuma inconstitucionalidade formal, já que, a exigência está em plena conformidade com as diretrizes básicas da Lei Geral de Licitações, que, como norma geral, privilegia os princípios da moralidade e da probidade, os quais, inclusive, justificam a publicação destes atos normativos, mediante a exigência de estruturas que comprovem o interesse e o compromisso das contratadas no combate a fraudes e em políticas de integridade.
Vejamos, por exemplo, que a Lei distrital 6.112/2018 e a Lei fluminense 7.753/2017, em seus artigos 3º e 2º, respectivamente, descrevem os objetivos da exigência do programa de compliance nas contratações, sendo eles: proteger a administração pública de atos lesivos, garantia da execução contratual, redução de riscos e obtenção de melhores desempenhos e qualidade.
Esses objetivos, como se nota, são suficientes a demonstrar que a exigência dos programas de compliance nas relações contratuais em momento algum fere as diretrizes básicas da Lei Geral de Licitações. É que, se a exigência está em estrita concordância às diretrizes da norma geral, ainda que esta não tenha disciplinado de modo expresso determinada obrigação — o que nem sequer é de sua natureza, já que, como vimos, as normas gerais disciplinam balizas, que serão melhor delineadas pela legislação específica sobre o tema —, não há que se falar em inconstitucionalidade.
Daí dizer que a obrigatoriedade dos programas de compliance nas relações contratuais com a administração pública exigida em diplomas estaduais, distritais ou municipais não conflita com os princípios gerais das licitações previstos no artigo 37, inciso XXI, da Constituição da República de 1988, tampouco com as normas gerais disciplinadas na Lei Federal 8.666/1993, ao contrário, os complementam e os definem de acordo com as peculiaridades de cada ente.
E veja que a própria Lei Geral de Licitações permite a exigência de requisitos técnicos previstos em legislação específica, ou, ainda, de qualificação restritiva no próprio bojo do instrumento convocatório, quando devidamente justificada e de acordo com os princípios gerais da licitação pública. Não poderia ser diferente, portanto, com a exigência de implementação de programas de integridade, após a assinatura do contrato, já que, como visto, a exigência encontra-se em estrita consonância às diretrizes básicas das licitações.
Não se está aqui a defender a perfeição dos instrumentos normativos em mencionados, pois tenho a plena convicção de que as inovações propostas não são no todo perfeitas, merecendo, sim, alguns (poucos) reparos. Contudo, quanto à inconstitucionalidade formal da exigência dos programas de compliance, não vejo como sustentá-la, sendo, portanto, tal exigência plenamente constitucional.
A segunda possível polêmica diz respeito à eventual inconstitucionalidade material quando da exigência de programas de compliance.
É que, para os que defendem a inconstitucionalidade, haveria restrição à competitividade do certame, já que somente as empresas possuidoras de programas de compliance poderiam participar das licitações públicas com a referida exigência, ou, ao menos, teriam vantagem em suas propostas, já que não precisariam gastar tempo e dinheiro com a criação de um programa no prazo estabelecido pelas normas. Segundo esse entendimento, tal regra violaria diretamente o artigo 37, inciso XXI, da Constituição, que assegura a igualdade de concorrência entre todos os participantes[3].
Esse posicionamento, contudo, decorre de uma leitura apressada das leis e atos normativos vigentes sobre o tema e não corresponde — em meu sentir — à melhor interpretação. Isso porque tanto a lei do Rio de Janeiro quanto a do Distrito Federal, por exemplo, estabelecem em seus artigos a exigência de implementação dos programas de compliance como obrigação contratual, e não como condição de habilitação.
Em outras palavras, não se trata de uma condição à participação no certame, mas, sim, uma obrigação que deverá ser concretizada após a assinatura do contrato. Assim, qualquer empresa poderá participar de certames licitatórios, possuindo ou não programas de compliance. Destaque-se, que o artigo 5º da Lei fluminense exige que os programas de compliance sejam implementados no prazo de 180 dias após a celebração do contrato. Diversamente, o Distrito Federal, em 16 de julho deste ano, alterou o teor do artigo 5º da Lei 6.112/2018, que conferia, assim como o estado do Rio de Janeiro, o prazo de 180 dias à implementação efetiva de programas de compliance. A nova redação do artigo, portanto, passou a exigir como termo certo e determinado para cumprimento da obrigação a data de 1º de junho de 2019. Essa iniciativa do governo do Distrito Federal pareceu bastante adequada, já que prorrogou o prazo de cumprimento da obrigação, garantindo maior eficiência à implementação dos programas de integridade (seis meses, em nosso modo de ver, é um prazo muito curto para assegurar efetividade do programa) e maturidade quando da celebração de contratos públicos.
Como se nota, a nova exigência — implementação de programa de compliance efetivo após a celebração do contrato — não inviabiliza a participação de empresas sem programas de integridade implementados em licitações públicas, eis que se trata de uma obrigação contratual. Inclusive, a existência de multa contratual como única sanção administrativa aplicável em caso de descumprimento da referida exigência corrobora citado entendimento.
Sobre a multa, veja como dispõe a Lei do Governo do Distrito Federal:
Art. 8º Pelo descumprimento da exigência prevista nesta Lei, a Administração Pública do Distrito Federal, em cada esfera de Poder, aplica à empresa contratada multa de 0,1%, por dia, incidente sobre o valor atualizado do contrato.
§1º O montante correspondente à soma dos valores básicos da multa moratória é limitado a 10% do valor do contrato.
§2º O cumprimento da exigência estabelecida nesta Lei, mediante atestado da autoridade pública da existência e aplicação do Programa de Integridade, faz cessar a aplicação da multa.
§3º O cumprimento extemporâneo da exigência da implantação não implica indébito da multa aplicada.
§4º A multa definida no caput não exclui a incidência e a exigibilidade do cumprimento das obrigações fiscais no âmbito do Distrito Federal.
É relevante neste contexto informar que tampouco há na multa aplicada qualquer caráter de ilegalidade. Ora, há tempos se reconhecem três hipóteses de multa nos contratos administrativos: a) as de natureza moratória; b) as de natureza compensatória; e c) as decorrentes de cláusulas contratuais especiais. Ainda que eventualmente se questione a natureza moratória da exigência em relação à terceira hipótese, àquelas decorrentes de cláusula especial do contrato, importante recordar que decorrem de reserva legal expressa do artigo 409 do Código Civil e possuem caráter sancionatório ou compensatório, não excluindo, inclusive, sua cumulação com as demais multas de ordem geral. Nenhum fundamento, portanto, ao entendimento de que tal sanção viola a ordem constitucional e legal nos processos competitivos.
Importante deixar claro, nesses termos, que os programas de compliance somente serão exigidos na 3ª fase da contratação, isto é, no âmbito da execução do contrato administrativo. Durante as fases de planejamento e de seleção do fornecedor, a existência ou não de programas de compliance efetivos nas empresas participantes do certame não as diferenciará em nada, não sendo este um critério de escolha. O valor apresentado em suas propostas, a sua capacidade técnica e o atendimento aos documentos habilitatórios continuarão sendo os únicos critérios classificatórios e habilitatórios à obtenção da proposta mais vantajosa pela administração pública.
Diante do cenário apresentado, somente uma leitura apressada desses instrumentos normativos poderia nos levar a ratificar o entendimento pela inconstitucionalidade material da exigência de implementação de programas de compliance nas relações contratuais com a administração pública. Em outras palavras, jamais se poderia afirmar a ocorrência de restrição à competição no caso, já que os programas de compliance somente serão exigíveis após a celebração do contrato, como obrigação contratual, não sendo, portanto, impeditivo à celebração do contrato administrativo.
Naquilo que diz respeito à inconstitucionalidade pela suposta vantagem competitiva das empresas que já possuem programas de compliance implementados, pois não precisariam inserir os custos da implementação em sua proposta, também não parece ter tal interpretação fundamento de validade. Isso porque é da natureza das licitações públicas a exigência de qualificações dos seus participantes, sendo recorrente, ainda, a exigência de qualidades mais específicas a depender do objeto da licitação, de sua complexidade ou, como visto, da exigência de cláusulas especiais determinantes da escorreita e fiel execução do contrato. Vou além, entrar nesta factual discussão conduziria, em meu sentir, a uma conclusão lógica, o custo da corrupção e dos desvios praticados em empresas sem tais programas é repassado aos contratos (e ao interesse público) de forma mais grave do que o custo que as empresas terão para se adequar a essas exigências. Mas, como dito, isso para mim nem sequer constitui discussão passível de enfrentamento, pois desprovida de bases sólidas e jurídicas de concreção. O argumento do custo, portanto, é retórico e factual.
Nesse contexto, se os editais podem exigir especificações técnicas, sem que isso configure inconstitucionalidade ou implique vantagem a determinados participantes, já que, pelo porte ou natureza destes, alguns podem já possuir determinadas qualificações em sua estrutura, natural, portanto, que quando a exigência venha de uma imposição normativa e contratual não exista, também, restrição à competição.
Em conclusão, não há que se falar em restrição do mercado às empresas que já possuem programas de compliance em detrimento ao postulado da ampla competitividade nos procedimentos licitatórios, já que a exigência de implementação de programas de compliance não é um requisito à assinatura do contrato administrativo, à participação no certame nem tampouco à formulação de propostas. Da mesma forma, não há que se falar em inconstitucionalidade pela imposição de multa à não implantação de tais programas, já que a multa contratual possui reserva normativa e tem natureza de sanção em razão de cláusula contratual especial.
Tenho participado de debates onde alguns membros do Ministério Público e dos tribunais de contas têm bradado a inconstitucionalidade dessas exigências, com argumentos, com o devido acato e respeito, eminentemente consequencialistas e sem fundamento legal. Pois bem, apresento nestas breves linhas fundamentos jurídicos a infirmar tais posicionamentos, esperando que, em pleno século XXI e diante dos vários casos de corrupção desvelados nos últimos tempos, não sejam os órgãos de controle aqueles que determinarão a fragilização ou a falência do instituto do compliance nas empresas.
[1] ATALIBA, Geraldo. Regime Constitucional e Leis Nacionais e Federais. In CLÉVE, Clèmerson Merlin. BARROSO, Luís Roberto. (org.). Doutrinas Essenciais Direito Constitucional. Vol. III. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 291.
[2] PINHO. Clóvis Alberto Bertolini de. Opinião ConJur. É preciso cautela ao exigir Compliance em contrato público. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-fev-18/clovis-pinho-preciso-cautela-compliance-contrato-publico>. Acesso: 25 jun. 2018.
[3] "Art. 37, inciso XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações." BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso: 29 jun. 2018.
(*) Rodrigo Pironti é sócio da Pironti Advogados, pós-doutor em Direito Público pela Universidad Complutense de Madrid e doutor e mestre em Direito Econômico pela PUCPR.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, em 03.12.2018.