Por Modesto Carvalhosa (*)
Tão nefastas quanto as propinas, outras formas são identificadas no plano institucional
Trata-se não apenas de um dia, mas de toda uma semana dedicada, em todos os países democráticos, ao balanço das lutas contra a corrupção pública e privada. Discutem-se pautas propositivas de integridade, conformidade e transparência no plano dos governos e das empresas, alargando os horizontes de compreensão e dos instrumentos de luta contra esse crime social. São estudos que vão além das medidas repressivas e punitivas que eficientemente vêm sendo praticadas.
Nos debates e reflexões promovidos pela OCDE, pela Transparência Internacional, pelas Nações Unidas, pela OEA, pelo Banco Mundial e pelo Instituto Não Aceito Corrupção, nota-se uma visão mais abrangente desse flagelo contra a humanidade.
E a discussão vai além, não se atém somente à corrupção criminalizada. Outras formas, tão nefastas quanto as notórias propinas, são identificadas no plano constitucional, das leis, das medidas administrativas e das decisões judiciais, que, por isso, dão uma feição legal ao crime de corrupção.
No Brasil essa percepção é clara para a sociedade, que enxerga nos privilégios outorgados aos políticos, aos partidos, aos altos servidores públicos dos três Poderes e a determinadas empresas e setores privados formas evidentes de corrupção. É a corrupção institucionalizada.
Não é por outra razão que no Brasil a percepção sobre esse nefando crime nos rebaixou da 79.ª posição para a 96.ª entre os países mais corruptos do mundo, não obstante o pleno reconhecimento dos esforços meritórios da Lava Jato.
Para compreender essa percepção aguda desse delito, que afeta mais de dois terços da população mundial, é necessário recordar que a corrupção é universalmente definida como a apropriação privada de recursos públicos. Entre nós ela se concretiza não apenas mediante propinas, mas por via da própria Constituição de 1988. O artigo 37, inciso XI, declara que nenhum servidor poderá ganhar mais do que os ministros do Supremo Tribunal Federal. Mas o parágrafo 11 do mesmíssimo artigo declara que esse teto não vale quando se tratar de verbas indenizatórias. Estas podem exceder sem nenhum limite o preceito moralizador contido logo acima. Ou seja, a regra é quebrada pela própria Constituição e no mesmo artigo. Assim, um alto funcionário, em vez de ganhar, dentro do teto, por exemplo, R$ 30 mil, conforme o inciso XI do artigo 37 ele recebe no fim do mês R$ 150 mil com base no parágrafo 11 desse mesmo artigo 37. São R$ 120 mil de penduricalhos. Aí vêm os tribunais e declaram que essa “pequena” verba extra é isenta de Imposto de Renda porque é verba indenizatória.
E a nossa Constituição, no mesmo artigo 37, diz que o servidor público deve rigorosamente cumprir no exercício de suas funções o dever de eficiência, conforme lei complementar que regularia a matéria. Acontece que, propositalmente, nunca foi promulgada essa lei complementar. O que não impediu que, desde sempre, se pagasse aos servidores públicos um substancioso “adicional de eficiência”, até para os aposentados. Trata-se de apropriação privada de recursos públicos advinda da Constituição. Um dever se transformou imediatamente num direito adquirido. Nenhuma eficiência é exigível, mesmo porque todos os servidores são estáveis e, portanto, não são demissíveis.
Outra forma de corrupção legalizada é a venda de férias. Embora se aplique aos servidores o regime trabalhista nesse particular (artigo 39, § 3.º da Constituição), várias categorias gozam de até quatro meses de descanso por ano e vendem parte desse ócio ao Estado, que é compulsoriamente obrigado a comprá-la. Recebem, assim, esses milhares de servidores a remuneração extra pelo não gozo de todo o período de 120 dias de repouso a que têm direito. Ganham, em consequência, até 16 vezes proventos e penduricalhos por ano, com o acréscimo de 30% do período de férias. Essa venda de férias constitui crime contra a ordem do trabalho. O empresário que comprar férias dos seus colaboradores é condenado a pena de prisão. Mas no serviço público a venda de férias não é crime, é lei. Mais uma forma de apropriação privada dos recursos públicos.
A Constituição de 1988 contém centenas de dispositivos, que outorgam privilégios aos servidores sem nenhuma contrapartida.
Ainda no capítulo das leis, destacam-se as que criam despesas tributárias a favor de determinados setores empresariais, desonerando-os de impostos e encargos trabalhistas, sem nenhuma prestação de contas, sem justificativa alguma e sem nenhum resultado social. São mais de R$ 120 bilhões anuais de recursos públicos apropriados pelos privilegiados segmentos privados amigos do rei. E o que dizer das leis do Refis, que favorecem os que não pagam os impostos, com a exclusão de multas e diminuição drástica da própria dívida, culminando com o perdão, como no caso do Funrural? Aí a apropriação privada de recursos públicos é feita na fonte, ou seja, o “contribuinte” não desembolsa os recursos públicos para os quais deveria contribuir.
E o que falar das centenas de leis vendidas que foram aprovadas pelo Congresso Nacional? Como recordou em histórico voto o eminente ministro Herman Benjamin, essas leis criminosas continuam vigendo. Nunca foram revogadas. Continuam a beneficiar as empresas corruptas que as compraram dos parlamentares por intermédio dos seus corruptos partidos.
Não há, portanto, como negar que, além da corrupção criminalizada, mediante tipos penais definidos, há a corrupção constitucionalizada, a legalizada e a judicializada. Todas levam ao mesmo efeito criminoso: a apropriação privada de recursos públicos.
Essa percepção, hoje universalmente discutida, constitui uma nova etapa na luta contra a corrupção em todo o mundo. E também entre nós.
(*) Modesto Carvalhosa é advogado.
Fonte: O Estado de S. Paulo, em 08.12.2018.