Por Renata Machado Saraiva (*)
Programas de compliance e leis mais duras poderiam evitar tragédias ambientais como o de Brumadinho?
É perda de dinheiro e de tempo implementar programas de compliance que busquem exclusivamente a eliminação ou a diminuição das chances de responsabilização criminal das empresas e de seus membros, em eventuais ações penais. Nos últimos anos, especialmente depois da publicação da Lei 12.846/13, conhecida como Lei Anticorrupção, e do Decreto 8.420/15, que a regulamentou, a questão ganhou holofotes Brasil afora.
A superficialidade no tratamento do tema, seja pelo mercado, seja pelos operadores do direito, gera uma leitura distorcida do instrumento e, pior, a sua consequente e corriqueira má aplicação – que inclui até mesmo a criação do “compliance de fachada”. A tragédia de Brumadinho é o mais novo palco para sabatina dos programas de compliance.
Instituídos para desenvolver regras de autocontrole e de autoprevenção de riscos gerados pelas atividades empresariais, estes programas de compliance são tratados, no âmbito do direito penal, como medidas modernas e cooperativas (entre as empresas e as autoridades públicas) de controle da criminalidade. Foram previstos a partir do reconhecimento de que as organizações, podendo gerar fatores criminógenos no decorrer de sua atividade, sujeitam-se a sanções penais, de modo que prever e prevenir estes fatores seria uma boa – embora não a única – alternativa às conhecidas falhas do sistema na persecução da criminalidade econômico-empresarial.
Foi natural, neste cenário, que o surgimento dos programas de criminal compliance ocorresse, a nível global, no campo das práticas de prevenção de crimes econômico-financeiros, notadamente em busca do fomento da ética nas relações empresariais, através de práticas anticorruptivas e contrárias aos delitos que afetam o mercado de valores. Assim se deu, em especial, porque estes programas adaptam-se bem às estruturas das organizações cotizadas, nas quais há uma separação entre a gestão da sociedade e a sua propriedade em sujeitos distintos, exigindo práticas éticas e de transparência na condução das atividades, no repasse e arquivo de informações etc.
Todavia, os programas de criminal compliance têm sua origem num contexto muito mais amplo do que o penal/empresarial, a partir de um fenômeno denominado autorregulação. Superando os instrumentos de command and control, a autorregulação mostra-se como uma nova dinâmica de intervenção estatal, uma tendência de cunho liberal e privatizador, de modernização do direito, na qual também os órgãos da iniciativa privada delimitam os riscos a que estamos sujeitos, as suas regras de gestão e, principalmente, as formas mais corretas de preveni-los ou minimizá-los. Trata-se, enfim, de um incentivo por parte do poder público à adoção voluntária pelas empresas e órgãos de mecanismos de autocontrole e de autoprevenção contra os riscos gerados pela própria atividade. Mais que isto, constituem instrumentos de fomento da ética nas relações empresariais, constituindo uma rica fonte de regulamentação conjunta (público-privada) de atividades de cunho técnico especializado.
Diferente do que pode parecer num primeiro olhar desatento, estamos falando, em verdade, de mecanismos de fortificação do Estado, reunindo esforços na sua tarefa fiscalizadora, ainda que para tanto tenha que se valer de instrumentos de gestão mais flexíveis e de cooperação com os entes privados.
Tendo em vista que se trata de programas voluntários, a sua implementação, desde que efetiva na prevenção e no controle de riscos, traria em contrapartida benefícios às empresas, devidamente previstos em lei, como a atenuação de sanções administrativas e penais e, até mesmo, o afastamento da própria responsabilidade criminal.
Quando analisados os requisitos essenciais aos programas de criminal compliance, é possível perceber que se adaptam bem à textura de medidas protetivas ao meio ambiente. Isto ocorre, por exemplo, no mapeamento de riscos gerados pela atividade empresarial; nas técnicas de arquivamento e de disseminação de informações relevantes entre os diferentes níveis da organização; na periódica revisão dos sistemas implementados – o que, aliás, está totalmente vinculado à busca pela “melhor técnica disponível” (métodos dinâmicos e efetivos de prevenção ambiental, fase mais avançada de desenvolvimento das atividades e de suas formas de exploração dos recursos naturais).
Assim, especificamente no caso do ordenamento jurídico brasileiro, no qual as empresas e os entes coletivos somente podem ser responsabilizados criminalmente por delitos ambientais (Lei 9.605/98), deixar de direcionar esforços para que também sejam utilizados estes programas de compliance no quadro das formas de regulamentação ambiental representa uma perda de tempo e de oportunidades em termos de proteção. Não só porque não nos restam muitas alternativas – o rol de estratégias de intervenção reconhecidamente falhas neste campo é extenso –, mas também porque, em se tratando de proteção do ambiente, o tempo corre contra nós.
Em situações de emergência, como é o caso do rompimento da barragem em Brumadinho, é importante não dispensarmos a leitura crítica dos fatos. Não são os programas de compliance os vilões desta história. Repito, temos ao nosso alcance bons instrumentos de prevenção de crimes contra o meio ambiente e, portanto, de meios de tutela ambiental, que devem ter sua implementação incentivada pelas autoridades (Executivo, Legislativo e Judiciário), com fiscalização atenta, bem equipada em maquinário e em conhecimento técnico.
São o “como” e o “por quê” implementar estes programas que devem ser revistos. Programas de compliance de fachada servem muito mais para aumentar a rotina de burocracias inúteis dentro das organizações do que efetivamente como escudos a eventual responsabilização criminal. Ao contrário, programas de compliance efetivos que tenham como principal objetivo fomentar relações éticas empresariais e a busca pela conformidade de cada atividade com a legislação correspondente tendem a diminuir as chances de responsabilização penal das organizações, ao menos a médio e longo prazo. São os sujeitos por trás dos instrumentos legais que devem mudar a sua conscientização, sob pena de, ali na frente, o feitiço virar contra os pretensos feiticeiros.
De mais a mais, ao contrário do que muitos pensam, o endurecimento das leis, por si só, não retirará do nosso horizonte o risco de tragédias como as de Brumadinho e de Mariana.
A fiscalização da efetiva implementação de boas práticas ecologicamente protetivas pelas organizações públicas e privadas cabe, em primeira mão, a nós, como consumidores, como cidadãos interessados, como agentes econômicos, como sujeitos políticos. Vivemos uma primavera nem tão silenciosa quanto a descrita por Rachel Carson em seu pioneiro Silent Spring, de 1962. As sirenes de alerta foram soadas há décadas; seguem sendo soadas diariamente. Mas quem de nós será capaz de realmente parar para escutá-las?
(*) Renata Machado Saraiva é advogada, mestre em Direito Ambiental (Universidade de Lisboa) e autora do livro “Criminal compliance como instrumento de tutela ambiental” (LiberArs, 2018).
Fonte: O Estado de S. Paulo, em 16.02.2019.