Por Felippe Aníbal (*)
Em evento sobre honestidade patrocinado pela JBS, novo diretor da Petrobras alerta para risco de “superdimensionar” integridade
A primeira frase do advogado Marcelo Zenkner já deu o tom de sua palestra no 3º Congresso Pacto pelo Brasil, em Curitiba, na última terça-feira (27): “Depois das graves turbulências pelas quais passaram, a JBS e a Petrobras, hoje são, efetivamente, novas empresas.” Até aquele momento, Zenkner falava como membro da comissão de medidas disciplinares internas que a Petrobras implantou após ter estado no epicentro da Operação Lava Jato. “Turbulência” é como ele, doutor em direito público, se refere à prisão de pelo menos trinta funcionários da Petrobras, entre eles gerentes e diretores, além de altos executivos da JBS. Na quarta, 28, Zenkner foi eleito pelo Conselho de Administração da Petrobras diretor executivo de Governança e Conformidade da empresa. É um especialista em compliance – nome novo para práticas que deveriam ser antigas: o cumprimento das regras de governança e o combate à corrupção. No evento em Curitiba, patrocinado pela J&F e pela JBS e que reuniu mais de mil participantes, Zenkner contou o que a Petrobras diz ter aprendido após os últimos escândalos de corrupção – até agora,3,2 bilhões de reais retornaram aos cofres da estatal graças a acordos entre os investigados e o Ministério Público Federal do Paraná.
A apresentação dele integrou o painel “Grandes empresas mudando a História pela integridade” no evento realizado pelo Observatório Social do Brasil, organização não-governamental voltada para a fiscalização de contas públicas. Também subiu ao palco Emir Calluf Filho, chefe de compliance da J&F – holding que controla 362 empresas, entre as quais, a JBS, que também está atolada na Lava Jato. Ambos falaram em tom de aula anticorrupção para a plateia formada, em sua maioria, por servidores, agentes públicos e empresários, além de estudantes. O público aplaudiu entusiasticamente, e muitos dos presentes até pediram para tirar foto com os palestrantes.
Zenkner alternou conceitos jurídicos com cenas corriqueiras. Recorreu a um conceito citado pelo jurista Luis Moreno Ocampo – ex-procurador do Tribunal Penal Internacional –, que classifica os membros de uma instituição entre “verdes” (incorruptíveis), “amarelos” (honestos, mas passíveis de corrupção, desde que não estejam sob vigilância) e os “vermelhos” (corruptos). A partir dessa divisão, o especialista detalhou seu entendimento sobre corrupção e defendeu que os programas de compliance devem ser voltados aos “amarelos”. “O que aconteceu na Petrobras e na JBS é que tínhamos os ‘vermelhos’ conduzindo a organização. Quando os ‘vermelhos’ estão no topo, os ‘amarelos’ também ficam avermelhados”, disse. “É fundamental que tenhamos ‘verdes’ na cúpula, porque aí os ‘amarelos’ ficariam esverdeados. Já os ‘vermelhos’, esses têm que ser expurgados da organização”, acrescentou, com ar triunfal.
Zenkner não citou nomes. Mas a julgar pelos desdobramentos da Lava Jato, ele se referia a sete integrantes do alto comando da Petrobras condenados ao longo dos cinco anos de operação. Entre eles estão os ex-diretores Paulo Roberto Costa, Renato de Souza Duque, Jorge Luiz Zelada e Nestor Cerveró e o ex-gerente Pedro Barusco. Alguns se tornaram delatores e tiveram de ressarcir os cofres públicos; Costa devolveu 90 milhões de reais, e Barusco, 239 milhões de reais.
Um exemplo hipotético citado por Zenkner deixou transparecer como, em sua visão, integridade demais pode atrapalhar. Após ser traída pelo marido, uma mulher amplia a vigilância “para além do bom senso” e começa a fazer investigações. Nem ao médico deixa o marido ir sozinho. Como reflexo do rígido código de conduta criado pela mulher traída, destacou Zenkner, o casal permanece infeliz. A historieta, segundo o agora diretor da Petrobras, ilustra o quanto o “superdimensionamento da integridade” pode ser “irracional” e atravancar negócios após casos públicos de corrupção: “Isso também acontece com as empresas. Quando elas passam por uma crise muito violenta, o pêndulo oscila da ilicitude para um superdimensionamento da integridade, que chamamos de ‘integritismo’. O bom senso perde o espaço, a boa-fé deixa de ser importante e essa pseudointegridade passa a funcionar como areia nas engrenagens, não como óleo. Chega até, em alguns casos, a ser irracional.” Por essa sutil comparação, é como se a mulher traída e os cofres públicos assaltados atribuíssem à integridade valor excessivo, atrapalhando a retomada da vida conjugal e dos negócios.
Conforme os balanços anuais da Petrobras, a Lava Jato provocou prejuízos ano a ano. Do início da operação, em 2014, até o fim de 2017, a companhia acumulou perda de patrimônio da ordem de 160 bilhões de reais. Só no fim do ano passado é que a empresa conseguiu fechar com lucro – de 26 bilhões de reais – e reparar parte do rombo. Como efeito não só do aspecto financeiro, mas da pressão da opinião pública e com a força-tarefa em seus calcanhares, a Petrobras teve dificuldade de começar a encontrar esse ponto de reequilíbrio e colocar “verdes” em postos estratégicos. Em grande medida, segundo Zenkner, tudo isso se deveu à Lava Jato. “Houve um período de caça às bruxas e muita gente ficou receosa de ocupar os cargos de direção. Ficavam receosos de tomar decisões. Porque a mínima falha seria considerada quase um crime”, acrescentou. “Estamos trabalhando para encontrar o equilíbrio para que a empresa venha a encontrar agilidade necessária para alavancar novos negócios”, disse.
Há um ano e oito meses chefiando o programa de compliance da J&F, Calluf Filho definiu a prisão de altos executivos do grupo como “uma benção e uma maldição”. Só depois desses episódios – em que “acionistas e controladores passaram por todas as mazelas que se possa imaginar” – o grupo adotou um discurso anticorrupção. O conglomerado sequer tinha setor de compliance. Hoje, o departamento conta com mais de quarenta funcionários. Chegaram a ser presos pela Lava Jato (e depois foram soltos) Joesley Batista, um dos donos da holding e diretor presidente da JBS, e o executivo Ricardo Saud. O grupo JBS fechou aquele que é considerado pela força-tarefa como “o maior acordo de leniência do mundo”, que envolve o ressarcimento de 10,3 bilhões de reais.
“Pra vocês terem uma ideia da dimensão, foi pago [pela J&F] mais de 1 bilhão em propina, dos quais mais de 600 milhões de reais [foram repassados] em doações eleitorais. Mas não existe doação eleitoral no Brasil. É uma troca”, apontou. “Na delação, a gente envolveu centenas de políticos: ex-presidentes, deputados, ministros, senadores. Isso está andando há dois anos e meio. Não tem a velocidade que o cidadão gostaria, mas acho que a gente tem, sim, que continuar lutando para que esse tipo de coisa seja consertada”, completou.
A exemplo da Petrobras, o grupo sentiu no bolso o peso da corrupção. Calluf Filho cita como exemplo o preço das ações da JBS, que recuaram à casa dos 5 reais, três anos atrás, antes de a empresa firmar o acordo de leniência. Agora, o ativo fechou o pregão de quarta-feira (28) a 27,85. O chefe de compliance do grupo atribui essa volta por cima ao fato de a holding ter metido o dedo na ferida e enfrentado a corrupção. “Foi a maior investigação interna já feita por uma empresa no Brasil. Hoje buscamos o fair play financeiro. Se vejo uma coisa errada, sou o primeiro a levantar a mão e apontar”, afirmou.
Na palestra de abertura do evento, na segunda-feira, o juiz João Pedro Gebran Neto, relator da Lava Jato no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) defendeu a operação e todos seus instrumentos – da aplicação de prisões preventivas estendidas aos acordos de delação e leniência. Gebran foi responsável, por exemplo, pelo relatório que ampliou para doze anos e um mês de prisão a pena do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no caso que ficou conhecido como “Tríplex do Guarujá”. Para Gebran Neto, a Lava Jato só se tornou possível a partir de uma série de fatores combinados, entre os quais, a atuação de um juiz – o que dá a entender que se trate de Sergio Moro –, a experiência em força-tarefa adquirida pela Polícia Federal e Ministério Público em operações, mudanças legislativas e novas jurisprudências. Assim como Moro sempre faz, Gebran Neto estabeleceu uma comparação entre a Lava Jato e a Operação Mãos Limpas, deflagrada na Itália, e que inspirou o modelo brasileiro. Disse considerar natural que a força-tarefa enfrente reações, sobretudo por parte do Poder Legislativo, a fim de enfraquecer o poder de investigação de policiais, promotores e juízes.
Dois outros especialistas palestrantes do congresso analisaram como, a partir do mensalão e da Lava Jato, criou-se no Brasil um mercado de compliance que não para de crescer. “A corrupção deixou de ser coisa do submundo, coisa de traficante, para ser coisa de empresário. O mensalão foi o que mais impactou na cabeça do empresariado, porque até então eles não viam gente relevante na televisão levando a pecha de criminoso”, disse o advogado Giovani Saavedra, doutor pela Universidade de Frankfurt. Saavedra contou que quando voltou do doutorado na Alemanha, em 2009, praticamente não se falava em compliance. Seu escritório não passava de uma “consultoriazinha” e suas palestras eram assistidas por “uma meia dúzia”. A partir do mensalão, o negócio se multiplicou, catapultado pela demanda de grandes grupos empresariais.
Outro palestrante, o advogado Rodrigo Pironti, atribui peso também à Lei Anticorrupção, sancionada em 2013 e que regulamentou melhor os programas de integridade e as relações público-privadas. Tanto Pironti quanto Saavedra criticaram a forma como vêm sendo costurados acordos de leniência e o fato de colaborações premiadas serem usadas como único elemento de prova. “Se a delação for a única forma de a pessoa se ver livre, ela delata até a mãe. Quando você propõe a delação como única metodologia, é muito negativo, porque pode ser usada de maneira distorcida”, avaliou Pironti. “A delação serve para desvelar o fato. Mas tudo isso precisa ser corroborado por provas.” Para Pironti, pós-doutor pela Universidade Complutense de Madrid, essa preocupação com a compliance e as boas práticas empresariais está relacionada ao receio dos empresários de serem responsabilizados criminalmente, não a uma mudança de cultura. “Infelizmente, esse interesse ainda se dá em decorrência do aspecto legal, pela possibilidade de as empresas usarem isso em eventuais acordos de leniência, como mitigação de sanção. As empresas estão preocupadas em não serem sancionadas”, sintetizou. Nesse rastro, o mercado brasileiro de compliance cresce menos por consciência e mais por medo da punição.
A chefe de compliance do grupo Odebrecht, Olga Pontes, também constava da programação, mas não compareceu. Na semana anterior ao painel, a Operação Lava Jato deflagrava sua 63a fase, que tinha como alvos ex-executivos da Odebrecht que não fecharam acordo de colaboração e que eram tidos como desafetos de Marcelo Odebrecht, ex-presidente da empresa e delator da Lava Jato. A JBS e a J&F estão entre os patrocinadores do congresso, organizado pelo Observatório Social do Brasil. Segundo os organizadores, a entidade foi uma das indicadas a receber patrocínio como parte da multa aplicada ao grupo depois do acordo de leniência. A organização do congresso não divulgou valores das cotas de patrocínio, mas destacou que a prestação de contas do evento deve ser disponibilizada na semana que vem. Um dos apoiadores foi o Instituto Joanir Zonta, mantido pelo grupo Condor – que no ano passado foi investigado por enviar cartas aos funcionários de sua rede de supermercados recomendando voto em Jair Bolsonaro (PSL).
Sir Carvalho, presidente da Vigilantes da Gestão – outra organização que tem por objetivo fiscalizar gastos públicos – desconfia tanto do discurso de responsabilidade adotado por empresas como Petrobras e J&F como dos programas de compliance que ambas dizem ter adotado. Carvalho lembra que as investigações da Lava Jato ainda estão em andamento e seguem apontando a recorrência de práticas de corrupção nessas corporações. Como exemplo, menciona as fases mais recentes, que atingiram a Odebrecht e a Petrobras. “O Vigilantes da Gestão não se sentaria com essas empresas. É muito cedo para que aceitemos o mea-culpa de empresas que ainda estão no olho do furacão e que, agora, querem criar uma roupagem nova, uma aura de responsabilidade. Ainda há muito por ser revelado”, disse.
(*) Felippe Aníbal é Repórter freelancer e cronista do Portal Plural.
Fonte: Revista Piauí, em 30.08.2019.