Por Caio Magri (*)
O avanço da pandemia tem exigido dos governos ações rápidas, tanto para o seu enfrentamento, quanto para seus impactos socioeconômicos. Medidas que visem o atendimento à população e a mitigação do colapso do sistema de saúde, bem como o resgate de trabalhadores, das famílias e da economia, viabilizando as condições para geração de renda emergencial, ampliação de serviços públicos essenciais e garantia humanitária de que a miséria extrema não precisará fazer parte do contexto que se seguirá à Covid-19.
Empresas de todos os portes também reiteram as necessidades de apoio sob a perspectiva de alteração dos protocolos fiscais e de créditos. Sabemos pouco sobre como a pandemia e a paralisação global da economia afetará o mercado de trabalho, para além de uma maior redução dos postos de emprego e maior precarização. Talvez alguns empregos mudem e desapareçam mais rapidamente do que previam os especialistas preocupados com o avanço das tecnologias digitais e robótica avançada.
Embora não totalmente suficiente, o apelo ao setor privado pela manutenção dos empregos é urgente e prioritário, sobretudo para os setores que, por décadas, se beneficiaram de estímulos fiscais. Além disso, no futuro próximo o debate acerca do desmonte da proteção social do trabalho promovido por medidas provisórias em situações emergenciais terá que ser incisivo e intenso para se evitar que se perenizem condições que fragilizarão as relações de trabalho, os direitos dos trabalhadores e a atuação das instituições sindicais.
O sistema de saúde pública é também fortemente impactado e a exigência de estar atento às grandes demandas de enfrentamento à pandemia dificulta a capacidade de refletir sobre seus problemas de cunho empresarial, na perspectiva das relações e condições de trabalho, das relações comerciais e nas questões estruturais. Temas esses que talvez sejam enfrentados somente quando a situação de crise se abrandar. Ademais, certamente a sociedade e os atores do sistema de saúde serão convidados a refletir sobre o sistema em si, suas fragilidades e desafios. Ou, pelo menos, assim deveria ser para que a pandemia tenha como resultado o fortalecimento do sistema e não o aprofundamento de suas fragilidades.
Hoje, o setor privado tem a oportunidade de demonstrar e reiterar o compromisso fundamental pela Responsabilidade Social Empresarial (RSE), gerar condições seguras para os trabalhadores e garantir os empregos. Além de reforçar as medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a adesão às práticas de RSE faz com que empresas tenham visão de longo prazo, para além do caixa trimestral, e tenham a oportunidade de promover condição fundamental para a dinâmica da economia brasileira, a demanda interna.
No entanto, o enfrentamento à Covid-19 impõe ainda outras oportunidades para a RSE e para as decisões transparentes e íntegras do setor privado. O setor de saúde, nesse contexto encontra-se no cerne dos dilemas éticos enfrentados pela sociedade. Conduzir suas atividades e a tomada de decisão pautada pelos princípios de integridade e ética são pilares fundamentais de sua responsabilidade, mas deve-se, além disso, prezar pelos princípios da transparência. As informações, a clareza de processos e de tomadas de decisão podem provocar o amadurecimento necessário para que seja possível compreender tais dilemas e refletir sobre como podemos enfrentá-los.
A falta de transparência nas ações e estratégias no combate ao vírus, por exemplo, dificultam inclusive avaliar as tomadas de decisão. A transparência ampla dos dados, do setor público e privado, possibilita a análise, os estudos e conhecimento gerado, a fim de orientar os melhores caminhos para o enfrentamento, bem como os impactos provocados pela pandemia. Também é uma forma dos atores do segmento demonstrarem o comprometimento com a sociedade e possibilitarem o controle social daqueles que se desviam da conduta, por exemplo, no caso de sobrepreços.
É importante também que o setor de saúde assuma o compromisso de contribuir nas reflexões de como construiremos o futuro pós-pandemia, os legados materiais e imateriais que serão deixados para a saúde pública, o novo normal.
Nas atuais condições, tanto os governos como o setor privado são convocados a oferecer bens e serviços para atender as necessidades mais prementes dos cidadãos e das comunidades. A flexibilização de normas e procedimentos como uma resposta aos entraves na agilidade de processos, por exemplo, podem oferecer condições para que profissionais e servidores possam agir em benefício próprio, escoando recursos já escassos para outros fins que não o benefício da sociedade. Um processo que aprofunda ainda mais as desigualdades sociais existentes e priva parcela da sociedade de seus direitos fundamentais, condenando-as definitivamente. Portanto, é fundamental garantir a integridade das relações público-privadas e privadas-privadas, inclusive dos fundos e recursos extraordinários, contratações públicas, doações e patrocínios e compras emergenciais.
No setor privado, a conformidade deve intensificar suas ações no que toca esses temas, mas também tem a oportunidade de pensar mecanismos eficazes para garantir a integridade e conformidade de processos de formas inovadoras que respondam à agilidade necessária. O acesso a recursos públicos chamará a atenção de diferentes empresas e setores, o que exigirá um esforço extra da conformidade corporativa, dos governos e dos órgãos públicos de fiscalização. Nada isentará empresas, independente do setor, de punições futuras em razão de condutas ilícitas durante a pandemia. As consequências poderão ser ainda mais graves para o setor da saúde, em razão do clamor que a relação direta com a vida representa.
No setor público, o uso de fundos e recursos emergenciais deve ser transparente em sua totalidade, publicados no formato de dados abertos e acessíveis ao controle social de toda a população. Além disso, o orçamento designado deve ser imparcial, evitando a monopolização e atendendo especificamente a emergência que o originou. Tanto para o setor privado, quanto para o setor público será fundamental a prestação de contas, a avaliação da eficiência das contratações referentes ao período de emergência e, no caso do setor público, ainda reintegrar ao patrimônio do Estado qualquer orçamento remanescente. O monitoramento independente, o controle social, a fiscalização e a auditoria devem se compor para um esforço ampliado de integridade, transparência e combate à corrupção.
A pandemia e a subsequente recessão impõem riscos às economias, especialmente às emergentes e suas democracias, não somente pela contração do Produto Interno Bruto (PIB), mas, sobretudo, pela possibilidade de fragilização do Estado de Direito e da competitividade das empresas. Mas, a pandemia também oferece a oportunidade da potencialização das ações e do movimento de Responsabilidade Social Empresarial, bem como do fortalecimento do sistema de saúde pública. A crise, tal como a recuperação, exige integridade e transparência, com as quais os setores público e privado constroem a confiança da sociedade e possibilitam a transformação para um legado positivo de um momento global como esse.
(*) Caio Magri é diretor-presidente do Instituto Ethos.
Fonte: ANAHP, em 17.04.2020