Cada sistema de saúde, seja ele na esfera pública ou privada, imprime padrões próprios por força das suas particularidades e relações mantidas com o mercado. O papel social do setor, além de sua natureza política, impõe de forma imperativa a otimização dos recursos, focos nos resultados e, indubitavelmente, a qualidade assistencial.
Em entrevista à edição impressa da Medicina S/A, o advogado Emerson Eugenio de Lima, um dos maiores especialistas no país na área de Governança em Saúde, pioneiro e criador de Técnicas de Governança Ético-Legal do setor, utilizadas por diversos profissionais e instituições de saúde e publicadas no Anuário Brasileiro de Governança e Acreditação em Saúde, explica de que maneira a adoção de tais ferramentas pode preservar e otimizar o valor da organização, além de contribuir para sua longevidade.
Temos observado nos últimos anos um interesse crescente de gestores por ferramentas de Governança em Saúde. Como você analisa esse movimento no Brasil?
Passando por inúmeras transformações nas últimas duas décadas, o setor médico-hospitalar tem exigido mais de suas lideranças. Temas antes distantes do mercado como fusões e aquisições, capital estrangeiro, investimentos, inovação, incorporação tecnológica, entre outros, passaram a fazer parte do dia a dia dos executivos do setor. Esse novo cenário empresarial, que igualmente reconhece o paciente como consumidor de serviços, exige de seus gestores a implantação imediata de rotinas de Governança em todos os níveis da instituição.
Apesar de certo atraso, as empresas que atuam na área de saúde têm despertado para a necessidade de implantar rotinas e processos de Boa Governança em seus processos corporativos e clínicos, com foco no cliente final (paciente), visando garantir a segurança, eficiência, responsabilidade, comprometimento e transparência nos atendimentos, bem como a sustentabilidade da operação.
Atualmente, o simples cumprimento de diretrizes, protocolos (técnicos e científicos), leis e normas de natureza ética, não bastam. A realidade do mercado atual impõe um foco maior no paciente, no atendimento de suas necessidades e na segurança do atendimento. Não à toa, constate-se um aumento no número de empresas que querem se aprimorar na busca pelas melhores práticas, que abraçam princípios como transparência, prestação de contas, equidade e responsabilidade corporativa.
Qual o principal fomentador dessas mudanças?
Sem dúvida, além dos aspectos operacionais e de movimentação do mercado, o novo e vital papel do paciente tem sido o grande fomentador. A internet e as mídias sociais mudaram o comportamento dos consumidores em todo o mundo e em todos os segmentos, inclusive na saúde. Esse fenômeno de interação e controle adotado por pacientes tem levado as empresas de saúde a repensarem seu modelo de negócio, a forma de agir e desenvolver suas atividades. Ao opinar e expor opiniões e, eventualmente, queixas em mídias sociais e portais especializados, os consumidores são capazes de interferir diretamente na operação das instituições. A rápida resposta às sugestões e problemas passou a ser questão de sobrevivência para a cadeia produtiva da saúde.
Como as ferramentas de Governança podem auxiliar gestores neste processo?
A falta de atenção por um único setor ou departamento da instituição às necessidades do paciente coloca em risco toda a gestão. A única forma de prevenir, fortalecer e alinhar os diversos departamentos e setores está na implementação de rotinas de governança, propagando assim a cultura e princípios corporativos, com o foco voltado para a segurança e atendimento das necessidades do paciente.
E isso significa que não é só padronizar rotinas. Mas, essencialmente, criar uma estrutura organizacional funcional e eficaz, que trabalha de forma coesa e ágil para a tomada de decisão e para a solução de problemas. A agilidade na resposta torna-se um atributo importantíssimo e indispensável à realidade atual.
Esse novo cenário coloca as instituições despreparadas em situação de alto risco, uma vez que adotar expedientes só para administrar demandas pontuais afasta as unidades de saúde de seus objetivos e metas.
De um modo geral, quais são as principais consequências?
Especificamente na relação com o consumidor final, a falta de atenção e a omissão de respostas às reclamações estão entre as principais causas que levam pacientes a ingressarem com processos contra médicos e instituições de saúde. Lembrando que informação adequada ao paciente é obrigação legal e dever ético atribuído ao médico.
Em termos de Governança Ético-Legal, isso envolve também outras questões de ordem prática, como Consentimento de Pacientes e Testamento Vital, duas importantes ferramentas que devem ser adotadas e observadas. Além da adoção de uma Política de Sigilo, Uso e Divulgação da Informação específica da empresa, Publicidade Médica, entre outras.
Em que áreas e como as ferramentas de Governança podem auxiliar os executivos do setor?
Hoje, dividimos a Governança na Saúde em quatro grandes áreas. A Governança Corporativa incorpora a administração e gestão da empresa, tendo como principais ações as melhores práticas em termos de gestão, estruturação e reestruturação de conselhos, monitoramento dos sistemas de decisão, estratégia empresarial, conflitos societários, etc.
Já a Governança Clínica trata da implementação de processos, costumes e rotinas com o objetivo de melhoria da assistência com foco na segurança do paciente, utilizando processos de qualidade e Governança Organizacional.
A Governança Ético-Legal em Saúde visa a avaliação e o suporte quanto ao cumprimento da legislação vigente e normas da natureza ética pelas empresas da área da saúde. A partir de uma avaliação/auditoria inicia-se a implementação de rotinas para o cumprimento integral e irrestrito da legislação vigente, bem como a assessoria e o suporte aos diversos setores e departamentos das instituições, bem como as comissões obrigatórias.
Uma área mais recente é a Governança de TICS (Tecnologias de Comunicação e Informação em Saúde) que visa a avaliação e auditoria da parte técnica, legal e ética dos sistemas de informação das empresas de saúde, em especial das informações dos clientes (pacientes) que são armazenadas, compartilhadas e acessadas, em virtude da legislação vigente e do sigilo profissional.
A adoção das ferramentas de Governança nestas diferentes áreas da saúde pode diminuir erros e falhas em hospitais?
Certamente. Se pensarmos nos dados divulgados no 2º Anuário de Segurança Assistencial Hospitalar do Brasil, divulgados no ano passado pelo IESS e pelo Instituto Feluma, constatamos que somados, os hospitais públicos e privados do Brasil registraram seis mortes, a cada hora, decorrentes dos chamados “eventos adversos graves”. Considerando todo o sistema hospitalar do País, 54,76 mil mortes foram causadas pelos eventos adversos graves, sendo que 36,17 mil poderiam ter sido evitadas.
É preciso ressaltar que os eventos adversos são inerentes a qualquer serviço de saúde, mesmo nos melhores e mais sofisticados sistemas do mundo. Não se trata de buscar culpados, mas, de propor medidas que enfrentem o problema. Quando comparamos proporcionalmente com outros países, o Brasil registra um número maior de eventos. E a questão está diretamente ligada, entre outras coisas, à falha nos processos.
Neste sentido, a diminuição de erros tem relação direta com a definição e sistematização de processos, através da implantação de mecanismos como protocolos, diretrizes de práticas clínicas, procedimentos operacionais padrão. Em todos as áreas das instituições, sejam elas clínicas ou organizacionais, a adoção de estratégias ligadas à Governança pode minimizar perdas.
Há estimativa do impacto financeiro para as instituições?
O mesmo estudo realizado pelo IESS projetou que os erros e falhas em hospitais consumiram, em 2017, R$ 10,6 bilhões do sistema privado de saúde. É um montante assustador para qualquer executivo ou gestor.
Falando em Governança Clínica, o que você tem observado de práticas adotadas em hospitais americanos/europeus e que podem ser aplicados em instituições brasileiras?
No Brasil, uma boa parcela dos serviços de saúde trabalha com pouco planejamento e quase sempre sem nenhuma política de avaliação de resultados. Em grande parte das instituições ainda vigora a lógica de resolver os problemas pontuais ou garantir a sustentabilidade da operação. Esta maneira comum de fazer a gestão não se aproxima em nenhum momento do cuidado.
Hoje, as principais instituição de saúde do mundo inserem a Governança Clínica junto ao contexto organizacional. Em outras palavras, elas transformaram a segurança e qualidade em suas principais prioridades. E isso impacta diretamente no negócio.
Este novo modelo, que entendemos como o grande passo a ser dado quando focamos na sustentabilidade do Sistema de Saúde, atentará principalmente para as questões de diferenças na qualidade do atendimento entre os serviços e o aumento das expectativas por parte dos pacientes.
Você mencionou a questão dos processos envolvendo profissionais e instituição de saúde. Nesse sentido, a judicialização ainda é um fator preocupante para o setor?
A judicialização da saúde tem consumido um montante significativo do orçamento da União, de estados e municípios, responsáveis pela gestão e financiamento do Sistema Único de Saúde. O mesmo ocorre em hospitais e operadoras de saúde. É um grande risco tanto para o setor público quanto para o setor privado.
Só para dar uma ideia, entre 2018 e 2017, o número de demandas judiciais relativas à saúde registrou um aumento de 130%. Um estudo, elaborado pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mostrou que, no mesmo período, o setor de saúde foi responsável por 498.715 processos de primeira instância distribuídos em 17 tribunais de justiça estaduais, e 277.411 processos de segunda instância, distribuídos entre 15 tribunais de justiça estaduais.
Em 10 anos (2009 a 2018), os gastos apenas do Governo Federal para o cumprimento de decisões judiciais somaram R$ 6 bilhões, um acréscimo de 1.083% no período. Em 2018, esses gastos totalizaram R$ 1,4 bilhão no âmbito da União.
Em sua opinião, quais iniciativas merecem destaque no Brasil?
Nós temos boas iniciativas nessa área. Uma delas é a parceria firmada entre o CNJ e o Hospital Albert Einstein, em 2018, que prevê equipe de médicos disponível em tempo integral para auxiliar em ações judiciais que aleguem urgência. As recomendações médicas, com base nas melhores evidências científicas disponíveis, ajudam a qualificar as decisões judiciais e garantem segurança aos pacientes e demais atores envolvidos. Por meio de consultoria a distância, juízes de todo o país recorrem aos profissionais de saúde da unidade hospitalar, quando envolver casos em que haja alegação de urgência com risco iminente de morte do paciente.
Outra iniciativa fundamental é o E-NatJus, um sistema online que reúne notas e pareceres sobre evidências científicas de efetividade clínica para tratamento de doenças. Lançado em 2017, numa parceria entre o CNJ, Ministério da Saúde e Hospital Sírio-Libanês, permite ao magistrado consultar, por exemplo, se o medicamento solicitado tem benefícios comprovados, ofertando mais efetividade e segurança no tratamento que o cidadão será submetido.
Para encerrar, quais temáticas devem receber atenção por parte dos executivos nos próximos meses?
Todas as áreas que envolvem Governança devem estar na agenda de executivos da saúde. Seja na área corporativa, ético-legal, seja na de informação e comunicação ou na área clínica. Mas, é inquestionável que a adoção de novas tecnologias entre médicos e pacientes, e sua consequente regulamentação, merece um cuidado especial. As questões que envolvem a telemedicina são, sem dúvida, uma oportunidade, mas, também um risco. É preciso estar amparado de ferramentas que auxiliem nesse processo de transição.
Finalizo ressaltando que é preciso repensar o modelo de gestão nos serviços de saúde. Isso significa que há responsabilidade partilhada por profissionais de saúde e gestores. Incorporar melhorias através de ferramentas de Governança e Gestão em Saúde é imprescindível e inadiável.
Fonte: Medicina S/A, em 09.06.2020