Por Thiago Spercel (*)
Balanço dos primeiros cinco anos da Lei Anticorrupção é positivo, com aperfeiçoamento do marco legal de combate à corrupção e reforço da governança corporativa nas empresas
A Lei nº 12.846, também chamada Lei Anticorrupção, completa cinco anos de publicação em 1º de agosto. Além de importante melhoria no marco legal de combate à corrupção, ela levou ao fortalecimento de uma cultura de ética e governança corporativa tanto em empresas privadas como em estatais e sociedades de economia mista.
O copo meio cheio
Houve uma mudança de foco que centrou o combate à corrupção na figura do corruptor, em especial pessoas jurídicas e grupos econômicos. Antes fundamentado no Código Penal e em outros diplomas legais voltados para o agente público, esse combate hoje se dá principalmente pela punição das pessoas jurídicas corruptoras, em especial com sanções pecuniárias (multas e devolução de vantagens ilícitas) e não pecuniárias (proibição de contratar, perda de incentivos, suspensão de atividades).
Por meio da justiça negociada e da colaboração, as autoridades brasileiras conseguiram celebrar acordos de leniência com grupos empresariais e recuperar valores expressivos desviados dos cofres públicos nos últimos anos. Essas organizações, por sua vez, começaram a atuar como verdadeiros “cães de guarda” em seus mercados, ao se verem submetidas a regras mais rigorosas que representam uma desvantagem com relação aos concorrentes que praticam atos ilícitos.
A nova legislação trouxe ainda a responsabilidade administrativa de natureza objetiva, sem necessidade de inquirir intenção, dolo ou culpa do agente. Além de facilitar o combate ao ilícito por meio dos procedimentos administrativos sancionadores (mais céleres e objetivos, sem a rigidez e o excesso de garantias típicos do processo penal), a mudança estimulou as empresas a investir na prevenção de condutas ilícitas e no fomento de uma cultura de compliance, seja por meio de treinamentos e ferramentas de monitoramento e controle em suas linhas de comando, seja pela ampliação de diligências em terceiros ou empresas adquiridas, a fim de mitigar o risco de sucessão por passivos relacionados a condutas ilícitas.
A Lei Anticorrupção estendeu a responsabilidade objetiva a todo um grupo econômico, incluindo controladoras, controladas, coligadas ou consorciadas, mas ainda faltam parâmetros claros para delimitar o alcance dessa solidariedade, em especial no caso de investimentos acionários e operações de fusões e aquisições. É importante que esse mecanismo seja usado apenas na exata medida em que determinadas entidades ou acionistas tenham contribuído para o cometimento ou a perpetuação de um ilícito.
Na era da transparência e da informação plena, também ficou claro que as punições jurídicas não são as únicas ferramentas indutoras do comportamento ético e íntegro: as respostas do mercado, dos consumidores e dos empregados podem trazer sanções reputacionais extremamente onerosas para as empresas corruptas.
O copo meio vazio
Se por um lado o novo modelo conseguiu melhorar a eficiência da persecução de condutas ilícitas, por outro ele revelou um descompasso entre órgãos de controle e fiscalização. É que nosso legislador constituinte foi muito generoso ao distribuir competências para órgãos encarregados da proteção à moralidade administrativa e ao erário público. Criou-se no Brasil o desenho institucional de “multiagências”, em que diversos órgãos e entidades públicas têm competência para realizar ações preventivas e repressivas de atos de corrupção nas esferas administrativa, cível, criminal e dos tribunais de contas: o Ministério Público, o Tribunal de Contas da União (TCU) e seus congêneres estatais, a Advocacia Geral da União (AGU) e a Controladoria Geral da União (CGU).
Embora dificulte o sequestro do Estado (pois sempre haverá um ente público não integrado ao esquema corrupto), esse sistema incentiva a competição destrutiva entre agências, traz enorme insegurança jurídica e desestimula a utilização da leniência. Vemos hoje uma judicialização dos acordos de leniência firmados pelo MPF, em ações movidas por outras autoridades de combate à corrupção, em grande parte com o fim de proteger suas esferas de competência e seu interesse institucional/corporativo.
Para garantir a coordenação das autoridades públicas e a segurança jurídica para o leniente, podem ser adotadas algumas medidas, como a criação de: (i) um processo de adesão aos acordos celebrados por um dos órgãos como requisito para que outro possa usar as provas coligidas no âmbito da leniência; (ii) acordos de cooperação e memorandos de entendimentos entre as autoridades; (iii) regras legais que estimulem a cooperação efetiva entre as autoridades, com prazos definidos para manifestação, sob pena de anuência tácita; (iv) uma comissão com representantes de todos os órgãos legitimados para negociar e deliberar um único acordo de leniência para uma dada empresa; ou (v) programas de negociação de leniências pré-validados (em abstrato) pelas autoridades para serem honrados por todas as agências.
E o futuro?
Entre os desafios que o país tem pela frente, destacam-se: (i) ampliação dos poderes e melhoria de estrutura e orçamento da CGU; (ii) adoção de critérios objetivos de cálculo para imposição de multas e outras sanções; (iii) alteração dos regimes de prescrição para evitar impunidades; (iv) revisão dos limites do foro por prerrogativa de função; (v) fomento à cooperação entre todos os órgãos de controle para segurança do jurisdicionado; e (vi) expansão da Lei Anticorrupção para também coibir a corrupção privada (como ocorre por exemplo no Reino Unido e na França).
O balanço do primeiro quinquênio da Lei Anticorrupção é muito positivo e o ferramental para evoluções ainda maiores está à nossa disposição. A mudança para uma cultura plena de integridade exige o constante apoio da sociedade e provavelmente levará mais de uma geração.
(*) Thiago Spercel é Sócio da Área de Societário, Mercado de Capitais e M&A do escritório Machado Meyer.
Fonte: O Estado de S. Paulo, em 30.07.2018.