Por Rodrigo Crelier Zambão da Silva (*)
O Estado do Rio de Janeiro editou recentemente três normas que, em conjunto, formam o seu novo marco legal anticorrupção. Trata-se da Lei nº 7.753/17, da Lei nº 7.989/18 e do Decreto nº 46.366/18. A Lei nº 7.753/17 determina a adoção de programa de integridade por determinados contratados da Administração Pública.
Passa a ser cláusula obrigatória nos contratos estaduais que a alta administração da empresa siga padrões éticos de conduta, dando o exemplo aos seus funcionários, além de criar códigos que demonstrem claramente a condenação da prática de corrupção.
Exige-se ainda a criação de canal de denúncias e a efetiva punição do funcionário corrupto.
Assim, o Estado cria incentivos para tornar as empresas co-responsáveis no combate à corrupção, na medida em que o aparato estatal não é capaz de, sozinho, vigiar e punir de forma integral a prática desses atos lesivos.
É uma lei pioneira no Brasil, que já está influenciando outros entes federativos a seguirem o mesmo caminho, como o Distrito Federal.
A Lei nº 7.989/18 criou o Sistema de Controle Interno do Estado e a Controladoria Geral do Estado – CGE, em moldes muito similares ao modelo federal.
Cabe à CGE três macrofunções, divididas em auditoria, ouvidoria e corregedoria. Incumbe à nova Corregedoria Geral do Estado a prevenção e o combate à corrupção, tendo como uma de suas atribuições auditar as empresas contratadas para verificar o funcionamento dos seus programas de integridade.
Por fim, no dia 20 de julho de 2018, foi regulamentada a Lei Anticorrupção (Lei federal nº 12.846/13), por meio do Decreto nº 46.366/18.
O Decreto disciplina a aplicação de alguns dos mecanismos no combate à corrupção previstos na Lei, como a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica, independentemente de culpa, e o acordo de leniência.
É verdade que reproduziu em grande parte o Decreto federal 8.420/15, conforme recentemente criticado em artigo publicado nesta coluna, tendo considerado ainda os atos normativos gradativamente editados pelas autoridades federais para a aplicação da lei anticorrupção.
Mas essa foi de fato a intenção do grupo de trabalho que elaborou o texto no âmbito da Procuradoria Geral do Estado, que reconheceu o valor da experiência já adquirida pelos órgãos federais na matéria.
Os atos normativos precisam de segurança jurídica para serem efetivos e qualquer inovação em terreno ainda em formação, ainda mais sem o devido lastro na experiência prática, pode se revelar frágil ou até mesmo nocivo ao propósito de combate aos atos lesivos à Administração Pública.
Ademais, certas características do decreto, tidas como defeituosas, sob o ponto da persecução dos objetivos do Estado, coadunam-se com o atendimento ao melhor interesse público. A desconsideração da personalidade jurídica, por exemplo, objeto de crítica, possui previsão legal e não pode ser ignorada como um forte instrumento no combate à corrupção.
Outro ponto criticado é a possibilidade de instauração do processo administrativo de responsabilização pelas autoridades máximas de cada órgão lesado, pois poderia haver, nesse caso, alguma espécie de retaliação política.
Ocorre que o Decreto permite a instauração ou até mesmo a avocação, em certas circunstâncias, do processo pela Controladoria Geral do Estado, que passaria a ser o órgão com atribuição para a atuação no caso concreto.
Mas o Decreto nº 46.366/18 também trouxe relevantes inovações. As principais estão no campo do cálculo das indenizações que poderão ser recebidas pelo Estado em razão da celebração dos acordos de leniência.
Inicialmente, ficou claro que se trata de uma antecipação, caso os órgãos de controle externo ainda não tenham exercido a análise da questão.
Evita-se, dessa forma, eventual repetição no Estado de problemas verificados junto à União quanto à atuação de órgãos externos à Administração Pública. Aliás, esse é um dos aspectos primordiais de pioneirismo da norma estadual: a definição da extensão e dos efeitos do ressarcimento que poderá ser contemplado.
Trata-se de questão cuja relevância e complexidade foram constatadas a partir de intensas discussões travadas no âmbito federal, entre empresas colaboradoras, autoridades e órgãos de controle, sobre a natureza do ressarcimento previsto nos acordos de leniência e os seus efeitos.
Discutiu-se, sobretudo, se o referido ressarcimento impediria a apuração de outros danos, não reconhecidos no acordo, decorrentes dos atos de corrupção, e a respectiva cobrança contra a colaboradora.
No §3º do artigo 56 do Decreto nº 46.366/2018, depois de ser prevista expressamente a possibilidade de inserção, no acordo de leniência, de rubrica com a natureza de ressarcimento (que não eximirá a pessoa jurídica da obrigação de reparar integralmente o dano causado), são elencadas as categorias que devem integrá-la: (i) o somatório de eventuais danos incontroversos atribuíveis às empresas colaboradoras; (ii) o somatório de todas as propinas pagas; e (iii) o lucro pretendido ou auferido.
Neste ponto, o Decreto também se valeu da experiência da Controladoria Geral da União e da Advocacia Geral da União.
Nos parágrafos subsequentes do artigo 56 é detalhado ainda o cálculo da categoria do lucro, permitindo-se que sejam considerados, para a sua composição e definição da forma de pagamento, o valor das informações que possibilitarão novos ressarcimentos à Administração Pública estadual, assim como a vantajosidade da celebração do acordo em relação às alternativas para a busca do ressarcimento, dentre outros fatores relevantes para o interesse público.
Também é previsto que seja considerada a obtenção de informações relevantes para a promoção da integridade e reputação públicas, ainda que não quantificáveis.
Críticas podem ser pertinentes e, nesse caso, certamente levarão ao aperfeiçoamento do Decreto 46.366/18.
Contudo, deve ser considerado que a opção de regulamentação da Lei Anticorrupção por meio de outra lei somente foi adotada por dois Estados.
E a baixa adesão a esse expediente se explica: adotar regras anticorrupção por lei imobiliza adaptações que sejam eventualmente necessárias, dificultando as margens de aprimoramento.
Ademais, o projeto de lei mencionado nesta coluna propõe medidas que podem reduzir a força inibitória da Lei Anticorrupção, como a flexibilização de fatores a serem considerados na dosimetria da multa.
É natural que sejam muitas as propostas de regular o sistema fluminense anticorrupção: a saída do problema enfrentado pelo Estado passa, entre outras medidas, pela atualização das normas.
Entretanto, o combate aos atos lesivos à Administração Pública não pode se descuidar da observância de um elevado grau de segurança jurídica e da perspectiva da persecução do interesse público.
Somente um sistema normativo que atente para os incentivos e riscos existentes nas contratações públicas permitirá a consolidação de uma Administração Pública proba num ambiente de negócios íntegro, gerando frutos para o Estado do Rio de Janeiro.
(*) Rodrigo Crelier Zambão da Silva é Procurador-Geral do Estado do Rio de Janeiro.
Fonte: O Estado de S. Paulo, em 31.07.2018.