Por Rochelle Ricci (*)
A situação tem se tornado cada vez mais corriqueira: o fornecedor envia ao cliente um presente com o objetivo de estreitar laços comerciais e se fazer lembrado, mas o presente é recusado ou devolvido por estar em desacordo com as regras de compliance da empresa presenteada.
Além do constrangimento para ambos os lados, intrínseco a esse tipo de episódio, o cenário narrado traz consigo outras repercussões, e um convite a reflexões interessantes, tanto do ponto de vista jurídico quanto estratégico.
O desenvolvimento de políticas relacionadas à entrega e ao recebimento de presentes, brindes, cortesias, entretenimento e hospitalidade (gifting ou giftgiving policies) não necessariamente se coloca como um dos temas prioritários na rotina das organizações, mesmo diante da preocupação geral com a agenda de compliance vivenciada atualmente.
Exceto no caso de diretrizes sobre presentes e correlatos para autoridades ou agentes públicos, que compõem o espectro de nuances do combate à corrupção, o tópico das políticas de gifting está mais ligado a temas como corrupção privada (não tipificada como crime no Brasil) e conflito de interesses, de modo que alguns dos impactos mais latentes advindos da existência e aplicação, ou não, de tais diretrizes são sentidos pela própria organização.
Consequentemente, a implementação de regras sobre o assunto pela empresa depende também da estruturação de sua governança e da existência de um direcionamento de ética, valores e conduta próprio daquela estrutura e já bem definido.
Há que existir, ainda, um alinhamento com as estratégias de marketing da empresa e com seu estilo comercial, especialmente porque o tema não se restringe à implementação e administração de suas próprias regras de gifting, mas ao cumprimento de regras de terceiros com quem a organização mantenha relações jurídico-comerciais (em especial, os clientes).
Atualmente, deve ser também uma preocupação de áreas como vendas e marketing conhecer os aspectos do sistema de conformidade do cliente mais relevantes para a sua atuação e saber exatamente com que regras a sua própria organização se comprometeu quando passou a fazer negócios com aquele cliente.
O cliente, como instituição que estrutura um programa de compliance visando efetividade, não somente espera que seus fornecedores e parceiros de negócios conheçam e cumpram suas políticas de conformidade à risca, mas também cobrará de seus próprios empregados e administradores que as regras integrantes do sistema sejam observadas.
O fornecedor que declara conhecer e promete cumprir determinada política de gifting de seu cliente, e mesmo assim envia-lhe um presente em desacordo com tal política, poderá obter um efeito oposto ao pretendido (estreitar laços comerciais) e passar a contraditória mensagem de que não está assim tão conectado com as necessidades aquele cliente.
A recusa ou devolução do presente é a manifestação socialmente indigesta da resposta do cliente, mas pode se traduzir na repercussão menos importante daquela estratégia comercial malsucedida (e inócua). Outros efeitos, como a aplicação de sanções contratuais ou mesmo o abalo ou rompimento da relação serão certamente mais percebidos pelo cliente e mais relevantes para o fornecedor.
Por fim, é essencial ter em mente que a preocupação com o tema, longe de trazer uma posição meramente jurídica ou estritamente formalista, contém um forte viés estratégico do ponto de vista das relações negociais. O cuidado com temas relacionados a compliance é hoje parte integrante do pacote de posicionamento e proteção reputacional das organizações e deve fazer parte do planejamento de qualquer empresa.
(*) Rochelle Ricci é sócia das áreas de contratos, imobiliário e compliance de Machado Associados Advogados e Consultores.
Fonte: O Estado de S. Paulo, em 08.09.2018.