Por Pedro Simões (*)
O Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (a antiga CGU) publicou no último dia 14 o Manual Prático para a Avaliação de Programas de Integridade em Processo Administrativo de Responsabilização de Pessoas Jurídicas.
Isso significa que, a partir de agora, existem critérios mais claros para a avaliação dos programas de integridade – clareza tanto para servidores, quanto para o setor empresarial.
A importância desse manual não deve ser ignorada pelo mercado: ele é um dos principais elementos que “seguraram”, até agora, a aplicação efetiva e sistemática da Lei Anticorrupção no País.
Se olharmos para o histórico de multas aplicadas nestes 5 anos de vigência da Lei Anticorrupção, encontraremos casos que parecem pouco expressivos. O Cadastro Nacional de Empresas Punidas revela que houve 58 companhias sancionadas nas diferentes esferas da federação com base na Lei e, de todos os casos, a maior multa aplicada – pelo Ministério do Esporte – chegou a R$ 5,5 milhões, um valor tímido se comparado ao potencial agressivo da Lei.
As multas, teoricamente, podem chegar a 20% do faturamento bruto das empresas e o histórico de sanções bilionárias da Lava Jato deixou no ar a expectativa de que devassas ocorressem em outros setores da economia, com valores também estratosféricos.
Na própria Operação Lava Jato, porém, a Lei Anticorrupção teve uma aplicação tímida – sabe-se que há Processos Administrativos de Responsabilização correndo, mas a estrela que brilhou mais alto, em matéria de multas, foi a da Lei de Improbidade Administrativa. Na Operação, o maior papel da Lei Anticorrupção foi viabilizar a realização de acordos de leniência, mas tanto os processos acusatórios (a imputação) quanto procedimentais, seguiram os ritos da Lei de Improbidade.
As dificuldades que seriam trazidas pela Lei de Improbidade, em especial a da prova de culpa ou dolo do agente público envolvido (algo que não é exigido pela Lei Anticorrupção), foram facilmente superadas pelas colaborações premiadas, na seara penal. Esse alinhamento dos planetas legislativos gerou o que a 5.ª Câmara de Revisão do Ministério Público Federal batizou de Microssistema Anticorrupção.
Tratou-se da tentativa de uma aplicação minimamente harmônica dos textos normativos que possibilitavam punir atos de corrupção. Isso aconteceu, é fato, mas não sem atritos. A multiplicidade de órgãos competentes (ao menos, hipoteticamente competentes) para atuar nas diferentes áreas do Microssistema Anticorrupção (sanções civis, penais e administrativas) levou o Ministério Público à mesa de negociação com seus pares institucionais – da Receita Federal aos Advogados da União, passando pelos Ministérios Públicos Estaduais até chegar aos Tribunais de Conta.
Se as instituições elegerem a aplicação da Lei Anticorrupção como arma principal do combate à corrupção, porém, esse problema poderá ser resolvido em parte. Ainda não haveria um órgão que centralizasse a aplicação – como ocorre no combate a carteis, via Cade -, mas ao menos a segurança jurídica poderia se pautar na consolidação da jurisprudência da aplicação de um instrumento normativo, preferindo as sanções administrativas às demais. Quando a instância administrativa responsável pela aplicação da Lei fosse omissa, entraria em cena o Ministério Público.
A escolha pela Lei de Improbidade, porém, revelou que os agentes institucionais preferiram se utilizar do instrumento que já conheciam a correr riscos com a Lei Anticorrupção – foi uma questão de custo de oportunidade.
A aplicação da Lei Anticorrupção, na Lava Jato, também traria outras dificuldades, em função da data em que entrou em vigor. Além disso, a Lava Jato começou como uma operação Policial e não teria ocorrido sem a Política Federal ser seu motor institucional.
Por que, agora, o jogo mudou?
Um dos motivos para que a Lei Anticorrupção não tenha sido utilizada até agora é que não havia, nem para servidores, nem para empresas, critérios para avaliar o compliance.
A Lei prometia que o compliance poderia diminuir a multa. O decreto que regulamentou a Lei trouxe alguns critérios para essa redução e os elementos que compõem o programa, mas não a metodologia para sua avaliação.
A ausência dessa metodologia abriria um flanco de insegurança jurídica na aplicação da Lei Anticorrupção, o que tornaria sua aplicação muito suscetível a posteriores questionamentos judiciais.
Com o novo Manual, porém, temos algumas certezas.
A primeira é que ao receber a notificação para se defender em um Processo Administrativo de Responsabilização (PAR) na CGU, a empresa terá 30 dias para apresentar sua defesa e seu programa de integridade – mas a avaliação, de fato, só ocorrerá no final do PAR.
O modo de apresentação do programa se dará pelo preenchimento de dois documentos: o Relatório de Perfil, um descritivo da estrutura da empresa, de aspectos societários e organizacionais, e o Relatório de Conformidade, mais voltado à descrição do compliance. Uma empresa que possui um compliance em dia não deve ter dificuldades para apresentar esse relatório – a reavaliação constante dos riscos (o risk assessment) deve fornecer à defesa todos os elementos necessários para cumprir o prazo.
Caso contrário, porém, o prazo de 30 dias se transformará em uma tarefa hercúlea, a depender do tamanho da empresa.
A segunda é que a CGU resolveu seguir uma trajetória já um tanto consolidada de “compliance nacional”, a partir do que o mercado já conhecia pelo Pró-Ética. Ficou claro, portanto, que outros parâmetros, ainda que não tenham sido rechaçados, não foram adotados como referenciais, em especial a ISO 37.001 – norma que padroniza internacionalmente programas de gestão antissuborno e que se tornou referência em alguns acordos de leniência na Lava Jato.
Isso dificulta um pouco a vida dos advogados que atuam na implantação desses programas: ainda que as diferenças nos programas sejam pequenas, os relatórios que atendem à ISO e os que atendem ao Manual são bastantes distintos, gerando um certo retrabalho para companhias que precisem atender aos dois standards. De todo modo, é louvável que a CGU siga um caminho que reflita melhor a realidade empresarial e funcional brasileira que simplesmente adotar cegamente os padrões ISO como os melhores.
A terceira é que empresas que possuíam um programa anterior à ocorrência do ato ilícito serão premiadas, podendo ter uma redução substancialmente maior da multa. Em um dos critérios de avaliação, a alíquota da multa (0 a 20% do faturamento) pode ser reduzida em até 1,3% (do faturamento) para empresas que possuíam o programa antes do ilícito. Nesse mesmo bloco, empresas que implantem seu programa após o ilícito, receberão uma redução máxima de 0,3% – lembrando que a redução máxima, atingidos todos os critérios, é de 4%.
A CGU propõe, no manual, que a avaliação seja feita em três blocos – i) Cultura Organizacional de Integridade, ii) Mecanismos, políticas e procedimentos de integridade; e iii) Atuação da pessoa jurídica em relação ao ato lesivo. Essa divisão é louvável, e o Manual deixa claro que o objetivo didático da separação foi o de distinguir programas de compliance meramente formais dos que apresentam real intuito ético.
Cada bloco apresenta perguntas abertas, mas objetivamente estruturadas, o que certamente dará um norte para advogados e profissionais de compliance elaborarem o Relatório de Conformidade. A grande vantagem, porém, será a de realizar as avaliações periódicas dos programas já seguindo as perguntas do Manual como um roteiro. O documento é generoso e traz vários exemplos de condutas esperadas pelas empresas as quais, inclusive, auxiliarão a comprovar a existência do compliance efetivo.
Ou seja, a partir de agora, o mercado possui, de fato, uma régua para avaliar o compliance.
E essa diretriz também está à disposição não apenas da CGU, mas de todos os órgãos da federação que poderão aplicar a Lei Anticorrupção.
Esse parâmetro, ainda que seja apenas um manual (soft law?), muda o cenário do Microssistema Anticorrupção e deve inaugurar uma nova fase do combate à corrupção no Brasil.
(*) Pedro Simões é advogado do escritório Duarte Garcia.
Fonte: O Estado de S. Paulo, em 21.09.2018.