Por Fabiano Catran (*)
Próteses, catéteres, stents e outros materiais implantáveis significam um grande avanço tecnológico no tratamento de traumas e doenças. No entanto, têm servido também, infelizmente, como uma verdadeira “mina de ouro” para que pessoas e empresas lhes deem destinação ilícita.
Segundo dados da Agência Nacional de Saúde, o mercado nacional de produtos médicos movimentou, apenas no ano de 2014, cerca de R$ 19,7 bilhões. A categoria de dispositivos médicos implantáveis foi a que mais cresceu, chegando a 249% entre 2007 e 2014.
Tamanha afluência atraiu a sanha de aproveitadores. Organizações criminosas viram como um grande atrativo a realização de procedimentos cirúrgicos que envolviam a utilização de órteses, próteses e materiais especiais (OPMEs).
As CPIs criadas para investigar a “máfia das próteses” apuraram a existência de relações promíscuas entre fabricantes e médicos, as quais mercantilizam a medicina, transformando-a num verdadeiro “balcão de negócios”. Lamentavelmente, profissionais chegavam a receber “comissão” de até 30% sobre o valor dos materiais usados em cirurgias e outros procedimentos. Uma cultura que começou com a entrega de brindes e amostras grátis evoluiu para o patrocínio de viagens e congressos e, há alguns anos, desaguou no pagamento de altíssimas “comissões”.
As vantagens buscadas, sabemos, são uma renda extraordinária ao profissional (direta ou indireta) envolvido; e um retorno financeiro ao fabricante — capaz de lhe proporcionar, com sobra, a recuperação de seu “investimento”.
Mas, enquanto os transgressores lucram alto com o crime organizado, o setor de saúde — público e privado — tem de absorver o prejuízo financeiro. Estima-se que as fraudes no setor de saúde geram, mundialmente, uma perda global anual de US$ 260 bilhões — fato que se agrava, no Brasil, pela atuação do crime organizado. Nos últimos três anos, o impacto das fraudes no país chegou ao patamar de R$ 77 bilhões.
Dados do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (Iess) apontam, ademais, que os custos das operadoras de saúde brasileiras com golpes, desvios e outros desperdícios equivalem, anualmente, a 19% de toda a despesa assistencial, o que representa um total de R$ 22,5 bilhões. Considera-se, ainda, que 18% dos gastos totais das contas hospitalares são fraudes e 40% dos pedidos de exames laboratoriais são desnecessários, o que eleva o gasto em mais R$ 22 bilhões.
Ainda que a “máfia das próteses” envolva apenas uma minoria e não possa, em hipótese alguma, ser generalizada a toda a classe médica, tais golpes à saúde pública geram enormes prejuízos, especialmente aos beneficiários que necessitam do Sistema Único de Saúde. Quando é praticado contra os planos e seguros-saúde, a conta é paga pela massa de usuários e reflete no preço do serviço e seus respectivos reajustes, além de interferir na qualidade e volume do serviço prestado. Em todo caso, um dano de proporções coletivas.
Para lidar com problema e em busca de maior regulação do setor de saúde, o Estado passou a adaptar e redimensionar sua ação regulamentadora. Paralelamente a isso, delegou às instituições de saúde o dever de autorregulação e autogestão de suas condutas. Difundiu, assim, a necessidade de implementação de programas de compliance para restabelecer o comprometimento ético e normativo no ambiente corporativo. Por compliance define-se o controle que as empresas devem estabelecer para responder, com eficiência, aos riscos, presentes e futuros, a que estão submetidas.
Desse modo, além de se reportarem devidamente às autoridades, as operadoras têm de adotar novas ações para identificação, análise e tratamento dos riscos a que se submetem. As empresas passam a ter, invariavelmente, um poder-dever de cooperar com o Estado no desenvolvimento de programas que controlem os riscos inerentes à sua atividade (autorregulação regulada). Isso inaugura um crescente volume de exigências (controles internos) e impõe ao compliance, cada vez mais, a necessidade de inovar para resolver antigos problemas e aqueles que ainda estão por vir.
Desde que a máfia das OPMEs foi revelada, no ano de 2014, pouco foi feito a respeito, especialmente diante da dimensão do problema. Por mais que se conheçam os potenciais personagens e o modus operandi utilizado, o setor de saúde suplementar ainda agoniza com tais relações obscuras entre o interesse econômico e a prática médica.
Mesmo que o fenômeno esteja longe de ser recente, sua solução não será obtida por meio da aplicação de antigas técnicas empresariais de gestão de risco. Dito de outro modo, é preciso um novo compliance no setor da saúde suplementar para a solução de um velho problema, as fraudes em OPMEs.
Já é hora de o setor esboçar uma reação, o que não se fará sozinho, mas com a ajuda das agências reguladoras, do Ministério Público e do próprio Estado, este contribuindo com a promulgação de leis (Legislativo), com a elaboração de atos normativos e consequente fiscalização da atividade-fim (Executivo) e, finalmente, com a distribuição da Justiça e a punição exemplar (Judiciário) daqueles que submetem o setor à “medicina de balcão” e à “advocacia de porta de hospital”.
É certo que a grande maioria das operadoras ainda tem dificuldade na implementação de controles internos que evitem as condutas ilícitas e as práticas criminosas que tanto prejudicam seu negócio e abalam sua reputação empresarial. Nesse aspecto, o setor de saúde suplementar precisa evoluir, se (re)inventar e superar seus percalços, o que gera grande desafio do ponto de vista prático, principalmente pela ausência de uma cultura mais eficaz sobre o compliance, que ainda se desenvolve de forma embrionária.
Um programa estrutural de compliance deve ser visto, então, como um grande aliado das operadoras de saúde na identificação, prevenção e solução de possíveis desvios. Como o crime organizado inova e se renova a cada dia, o compliance também pode atuar na esfera preventiva, potencializando a capacidade das corporações para lidarem com as situações contínuas de ameaças e danos.
Centrando foco na promoção de interações éticas entre as operadoras, seus colaboradores e os demais envolvidos na prestação de serviços aos pacientes, a implementação de um programa de compliance na saúde suplementar tem significativa importância na (i) contenção de despesas médicas e otimização da eficiência dos serviços hospitalares; na (ii) modificação do comportamento médico na definição do diagnóstico, indicação cirúrgica e uso de OPMEs; e na (iii) transparência dos gastos, procedimentos, efetiva utilização e quantidade de OPMEs utilizadas.
Tudo somado, é fundamental que as operadoras de saúde aprimorem seus conhecimentos técnicos para enfrentar as resistências e dificuldades do mercado neste particular e implementem, assim, um programa de compliance capaz de integrar os processos organizacionais e, numa visão macro, de estabelecer mecanismos internos de identificação, análise e tratamento dos riscos, capturando aqueles mais emergentes e monitorando-os com o máximo de criticidade.
(*) Fabiano Catran é advogado empresarial, especialista na área de saúde pela Universidade de Harvard.
Fonte: CONJUR, em 25.10.2018.