Por Tertius Rebelo (*)
Nos últimos anos, o número de processos contra médicos e profissionais da saúde aumentou muito. Há aqueles que acreditam que o tratamento é ineficaz e de baixa qualidade. Entretanto, outros acreditam que a justiça foi banalizada pelos pacientes.
Esse é um cenário que se tornou cotidiano quando tratamos da diária da prática médica e a evolução da relação do médico com seu paciente vem ganhando contornos incomuns que repercutem sensivelmente na esfera dos direitos subjetivos dos sujeitos envolvidos no ato de “dar” serviços de saúde e de recebê-los.
De um lado temos o profissional da saúde que, de forma inequívoca, não mais se encontra – ao menos do ponto de vista fático – numa relação de hierarquia de sobreposição em relação a seu paciente e que, muitas vezes, está vinculado a contratos coligados de natureza complexa, nos quais se verifica uma produção em massa com remunerações aquém do desejado por esses profissionais, cujos efeitos são invariavelmente maléficos ao sistema de saúde como um todo.
Do outro lado, temos o paciente “moderno”, que tem acesso a ferramentas de pesquisa das mais variadas (com a internet, smartphones e o Google, dentre outras ferramentas de busca e Apps) e que exige cada vez mais informações específicas a respeito do seu estado de saúde e das alternativas possíveis de tratamento.
O ponto é que essa nova relação médico paciente tem assoberbado o Poder Judiciário com novas ações de erro médico, relatório de Judicialização da saúde em números de 2017, produzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), encontramos um número assustador de ações ajuizadas em razão de “erros médicos”, que chegaram a um total de 57.739 , o que perfaz um número 158 demandas versando sobre erro médico ajuizadas diariamente em nosso país, o que indica o ajuizamento 6,5 ações por erro médico a cada hora.
Recentemente, foram disponibilizados os novos números da judicialização da saúde no Brasil, para 2018, por meio da 14ª edição do relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça.
Já no que se refere ao erro médico, houve um aumento considerável do número de ações, que passou de 57.739 para 83.728, o que representa, aproximadamente, 230 demandas versando sobre erro médico ajuizadas diariamente em nosso país. E um aumento de 6,5 ações por erro médico a cada hora, para quase 9,6 ações judicias diariamente.
O novo diagnóstico demonstra que, entre 2016 e 2017, houve um incremento de aproximadamente 400 mil processos judiciais. Isso indica que o tema exige a atuação coordenada de todos os atores do sistema de saúde e do sistema de Justiça.
É neste contexto normativo e social que o profissional da medicina se insere, atuando em área particularmente vulnerável a acusações, sejam elas civis, administrativas, ou criminais, vendo-se cercado de riscos potenciais, derivados de suas ações ou omissões, e contando com a carga adicional de lidar com ambientes estressantes e pacientes muitas vezes pouco colaborativos.
E várias condenações ocorrem porque o médico e/ou Instituição de Saúde não praticam o gerenciamento do risco jurídico. Alguns deixam a sindicância no CRM à deriva, resultando em abertura de processo ético. Em outros casos, muitas vezes os médicos não possuem a prova documental apropriada para favorecimento de suas defesas (tais como Termo de Revogação do Tratamento, Notificação de Abandono do Tratamento, Orientações de alta, Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, e outros) ou quando os têm, esse podem ser anulados pela Justiça por não atenderem aos requisitos legais específicos.
Assim, a aplicação do compliance na profissão médica pode municiar os profissionais e empresas da saúde para que estejam aptos a melhor sustentar a correição de sua atuação, servindo de apoio à sua defesa em reclamações administrativas, judiciais, ético-profissionais e penais. Isso é relevante porque os erros médicos inserem-se num contexto dinâmico, ocorrendo, principalmente, devido a falhas multifatoriais e inevitáveis.
Devemos considerar, também que a alegações de “erro médico” custam ao setor de saúde bilhões de reais anuais. E no cenário mundial, bilhões de dólares. Mas, além de dinheiro, a ausência de compliance e falta de uma boa conduta de prevenção são potenciais geradores de danos à reputação de um médico, clínica ou de um hospital. Por oportuno, devemos lembrar que vários profissionais da saúde desconhecem as regras impostas pelo Ordenamento legal, já que as faculdades de medicina não educam o médico para lidar com esta realidade.
Dados de 2016 do Anuário da Segurança Assistencial Hospitalar no Brasil, do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), revelaram que, em média, 829 brasileiros morreram por dia em hospitais devido a erros e falhas que poderiam ser evitados. Diante desses dados, esses erros hospitalares, alcançou a marca de 2ª maior causa de morte no país.
A banalização de processos contra médicos e profissionais da saúde é decorrente de alguns motivos. Um deles é a confusão que os pacientes fazem entre o que é erro médico e mau resultado/iatrogenia/resultado adverso previsível e também pela necessidade do paciente de “encontrar” um culpado, seja pela existência de seu problema de saúde ou por insucesso do tratamento. Importante mencionar que a insatisfação decorrente de um tratamento, por si só, não gera responsabilidade jurídica. É importante lembrar que os tratamentos de saúde, em tese, geram obrigação de meio e não de resultado (responsabilidade objetiva). Ainda assim, pessoas insatisfeitas ingressam na Justiça para tentar conseguir uma reparação.
Isso também ocorre pela facilidade de acesso a informações médicas pelo paciente e pela pressão da mídia sobre os casos de saúde; além da facilidade de acesso à justiça e aos deferimentos de gratuidade de justiça para a maioria dos pacientes que processam médicos.
Importante dizer que um “evento adverso” assistencial não significa necessariamente que houve um erro, negligência ou baixa qualidade do serviço. Significa que uma falha ocorreu determinando um resultado assistencial indesejado relacionado à terapêutica ou ao diagnóstico.
Portanto, o médico atualmente se depara com uma realidade na qual o gerenciamento dos riscos médico-jurídicos já se faz muito necessário e ele deve estar preparado antes que o evento indesejado aconteça. O bom médico, diligente, deve conhecer os novos paradigmas e as atuais nuances que fazem “simbiose” com a profissão, sempre com a intenção de melhorar o desenvolvimento de sua atividade e visando os princípios da beneficência, não maleficência, equidade e justiça.
Para isso, temos a aplicação do gerenciamento de risco, que consiste em medidas de controle e prevenção para evitar e reduzir a probabilidade de uma situação de perigo ou erro acontecer. Em instituições de saúde, uma falha pode levar a morte do paciente.
Contudo, não existem fórmulas milagrosas que possam evitar uma demanda judicial ou ético-profissional, até porque o ser humano é falível e o relacionamento pessoal entre paciente e profissional é imprevisível.
Nesse sentido, sem um planejamento adequado para o bom desenvolvimento do trabalho interdisciplinar e o crescimento das empresas de serviços médicos, o percentual de ocorrência de erros e insucesso nas defesas aumenta de forma considerável.
Pois bem, o Gerenciamento de Risco na Prática Médica, em apertada síntese, pode ser definido como um sistema formal que tem por objetivo aprimorar práticas cotidianas dos médicos e auxiliares, visando alcançar um nível confiável no relacionamento com o paciente e a equipe, inclusive interdisciplinar e multidisciplinar, no preenchimento de documentos (leia-se: Prontuário do paciente no seu sentido mais amplo, Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, Contratos, dentre outros), nas questões de biossegurança e no conhecimento da legislação (ética, administrativa, consumerista, civil e criminal) existente, além da blindagem patrimonial da pessoa jurídica ou física (com societário e sucessório).
Adotar tais cuidados pode parecer irrelevante, mas não é. Faz notória diferença no preparo da tese de defesa nos processos cíveis, criminais, ético-profissionais, inquéritos e sindicâncias.
Além disso, devemos lembrar que nem sempre as expectativas do paciente ou dos seus familiares são alcançadas, apesar do tratamento chegar ao seu objetivo técnico/terapêutico, entendemos que não é mais facultado ao profissional da área da saúde ater-se somente a aplicação da boa técnica, cabe a ele, mormente, em razão da complexidade do ser humano, enxergar o paciente como um ser de corpo e alma. Como costumamos dizer, as relações intersubjetivas não são tão simples como parecem e, nem sempre, as expectativas do médico são idênticas as expectativas dos pacientes. É muito comum que o paciente crie “expectativas ilusórias”, seja em razão da falha na comunicação, seja pela própria incapacidade de querer aceitar o que o médico explicou.
Para finalizar, cumpre esclarecer que a aplicação de rotinas legais e éticas não tem o objetivo de propiciar um clima de rivalidade ou de viés unicamente defensivo na relação médico-paciente, pelo contrário, são medidas nobres e fundamentais, que demonstram fidelidade e respeito à autonomia e demais direitos fundamentais do paciente e, como resultado, temos pacientes satisfeitos, hospitais e médicos seguros e transmissores de segurança, bem como a redução dos índices de judicialização; e com observância de princípios gerais de Bioética.
Desta forma, conclui-se ser útil, e até mesmo essencial, que os profissionais da saúde passem a adotar técnicas gerenciamento de riscos e de compliance, com as ferramentas de proteção ora indicadas, adequando-se assim a uma realidade pautada pela dificuldade de exercício da profissão médica e de facilidade de acesso de pacientes a mecanismos de judicialização da medicina.
(*) Tertius Rebelo é advogado formado pela Universidade Potiguar em 2001, pós graduando em Direito Médico e da Saúde, pós‐graduado em Direito Civil e Empresarial; Professor convidado do curso de Medicina da UFRN - Aulas sobre Direito Médico e Bioética; Professor convidado do curso de Medicina da Universidade Potiguar/RN - Aulas sobre Direito Médico e Bioética.
Fonte: Tertius Rebelo, Direito Médico, em 01.12.2018.