Por Taarik Castilho (*)
O cálculo de riscos de sua atividade e a adoção de medidas mitigatórias é cada vez mais difícil para as empresas, independentemente do setor em que atuem. Por mais que se dediquem ao planejamento e à prevenção de ações de alto impacto ambiental ou de acidentes pelo uso dos bens e serviços que produzem, dificilmente as empresas são capazes de antever todos as potenciais consequências que as modificações de procedimento, produção ou adoção de novas tecnologias em sua cadeia produtiva possam gerar. Não é incomum que sejam incapazes de antever, até mesmo, os limites e estimativas de sua responsabilização por terceiros.
Isso ocorre porque, no que se chama hoje de “sociedade do risco”, transformaram-se os paradigmas da responsabilização civil. Culpa ou dolo deixam de ter papel fundamental na formação do dever de indenizar (responsabilização pela imputação), e em seu lugar cada vez mais se insere a ideia de risco-proveito (é responsável pela reparação aquele que colhe os benefícios da atividade que desenvolve, pelo que deve responder pelos danos dela decorrentes).
Embora numa primeira análise isso seja louvável (protegem-se aqueles que sofrem as consequências pela adoção de novos produtos ou serviços, cujas consequências potencias sejam desconhecidas – risco), isso pode tornar inviável o exercício da atividade econômica, punindo o agente criador de um novo risco, mas que potencialmente, por sua atuação, tenha reduzido outros à que a sociedade estava exposta.
Exemplo de como o risco “não calculado”, aliado à responsabilização desligada de culpa e imputação, podem abalar o mundo empresarial é o das empresas farmacêuticas nos Estados Unidos.
Risco criado
Como se sabe, todo medicamento, e toda vacina, é um produto cujo consumo pode levar a consequências danosas para quem dele se utiliza (sua utilização envolve risco). Com a vacinação em massa, direcionada precisamente à redução das mortes por doenças que podem ser controladas e potencialmente erradicadas (risco natural), submeteu-se a população ao risco de sofrer efeitos adversos da vacinação (risco-criado).
E como as empresas farmacêuticas colhiam os frutos do consumo de seus produtos (vacinas), passaram a ser responsabilizadas civilmente pelas reações adversas deles derivadas, até a morte.
Isso criou uma avalanche de demandas indenizatórias, naturalmente acolhidas nos termos e limites dessa nova responsabilidade da sociedade do risco, mas que tornou economicamente inviável o exercício da atividade empresarial, de forma que hoje são cada vez menos numerosos os produtores de certas vacinas.
Essa responsabilização pelo risco criado pelo desenvolvimento de novas vacinas agora, paradoxalmente, acaba por tornar possível o reaparecimento do risco que a vacinação buscava mitigar ou erradicar (morte e sofrimento decorrentes do desenvolvimento da doença).
Esses fatos gravíssimos, como os relatados e que ocorreram nos Estados Unidos, podem levar uma empresa a se retrair, ou mesmo a abandonar planos de inovação de seus produtos, serviços, formas de produção e de ataque a novos mercados, por não conseguir avaliar a extensão dos danos que poderia causar e, portanto, da responsabilização a que estaria sujeita.
Isso também se sente na aviação, na produção de bens esportivos, na construção civil e no mercado de produção de energia (há grande discussão acerca dos impactos ambientais da produção de energia eólica, especialmente na Alemanha, e que por serem ainda desconhecidos, geram impactos no desenvolvimento do setor face a responsabilização baseada na ideia de risco criado).
Hoje, o universo das atividades industriais e de outros setores é regido por leis, normas e padrões, enfim, vários instrumentos que regulam o mercado e, quando se configura o desrespeito e o litígio, os players estarão sujeitos a multas, pagamento de indenizações, interrupções no seu funcionamento e outras punições.
Por mais que se preocupem em adotar medidas preventivas para mitigar qualquer problema futuro, há situações em que o dano é irreparável e sua ocorrência imprevisível. Se o projeto construtivo levou à extinção de uma espécie animal, ou vegetal, ou provocou a perda de vidas humanas, o pagamento de indenizações, por mais altas que sejam os seus valores, torna-se irrelevante sob a perspectiva de efetiva recuperação da situação criada. O dano é irreversível de qualquer forma e, muitas vezes, o risco da atividade era integral ou parcialmente desconhecido pelo desenvolvimento científico da época (lembre-se sempre, a esse respeito, do surgimento do raio-x, amplamente utilizado até para fins artísticos quando foi descoberto, tendo sido notadas as consequências da exposição à essa nova radiação só muitos anos mais tarde).
Na sociedade de riscos temos consciência de que nem sempre é possível prever o que irá acontecer, apesar de planejamento e estudos prévios. O processo de amadurecimento exige a quebra de paradigmas e o avanço do conceito clássico de responsabilidade. Não se trata de excluir a responsabilidade civil (pois se todos são responsáveis pelo risco criado por sua atividade e toda atividade cria risco, na verdade todos são responsáveis e a responsabilização mesma deixa de fazer sentido), mas dar um passo à frente da adoção de novos sistemas de responsabilização e de regulação do risco, com adoção de penas mais eficientes.
Não é sem motivo que hoje se percebe um grande crescimento na importância que se dá à adoção de sistemas privados de controle interno (compliance, parâmetros de controle de impactos ambientais e sociais, entre outros) e externo (exigência de demonstração da adoção de regras de compliance e de controle de impactos ambientais e sociais exigidos por financiadores de atividade empresarial e seguradoras, por exemplo).
O caminho para as empresas lidarem com essas questões é mudar a ótica e adotarem a análise reversa do risco, que deverá aliar padrões, normas e protocolos já utilizados, mostrando até que ponto é saudável correr riscos e em que medida eles serão partilhados, ou não, pelos diversos agentes que se envolvem num mesmo empreendimento (por exemplo, executor das obras, dono das obras, produtores dos projetos, investidores, seguradoras e administração pública em sua função de aprovação de projetos e de fiscalização de sua execução).
Como nem sempre é possível ter uma análise precisa de questões problemáticas relacionadas ao negócio, as penalidades dependem de quem avalia o dano e distribuem-se segundo contratualmente fixou-se entre os players (sob essa perspectiva, não faz sentido o investidor afastar toda a responsabilidade potencialmente que sobre ele recaia, pois o agente direto poderá ser arruinado por sua responsabilização, caso em que não seria capaz de produzir retorno ao capital investido de qualquer forma, por exemplo).
Essa nova realidade da responsabilização é que deve ser considerada pelos empresários na produção de seus contratos e na distribuição dos riscos e retornos de suas atividades, cuidando para que os contratos que firmem, para além de fixar obrigações e regras clássicas de imputação de responsabilidade, também prevejam como e em que medida a responsabilização desligada de culpa (risco) será, ou não, compartilhada. Além de decidirem, clara e racionalmente, sobre os mecanismos de controle interno das condutas da companhia (compliance, regras de controle de impactos sociais e ambientais, sistemática de produção de estudos prévios de riscos potenciais, entre outras).
Afinal, em assim não fazendo, estarão realizando investimentos sem que possam, ainda que imperfeitamente, antecipar os seus custos totais de sua atividade, pois sua responsabilização poderá desligar-se de seu dolo, ou culpa, e lhe ser imposta pelo risco criado.
(*) Taarik Castilho é sócio responsável pela área de Contencioso Cível do Franco Advogados.
(05.12.2018)