O terceiro evento da série “Diálogos entre os Setores Público e Privado”, promovido pelo Instituto de Cooperação Jurídica Internacional (ICJI), em parceria com o Grupo de Estudos em Direito Penal Econômico da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP), em 25/02, em São Paulo, discutiu a proposta de Circular do Banco Central sobre a regulamentação de prevenção de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo, divulgada na Audiência Pública 70/2019. Participaram representantes do Banco Central (Bacen), da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), além de advogados, acadêmicos e representantes do setor financeiro privado.
O Procurador-Adjunto do Bacen, Marcel Mascarenhas apresentou o contexto no qual foi formulada a proposta de Circular, em fase de consulta pública até 19 de março. O texto é fruto da reflexão do Grupo de Trabalho criado pela instituição para revisar a Circular 3.461, em estreita cooperação com o Coaf, o Ministério Público e o Judiciário. O principal objetivo, segundo Marcel, é produzir um conjunto de normas de natureza mais principiológica e menos roteirizada, e, assim, trabalhar com uma abordagem de análise de risco como norteadora da política de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento ao terrorismo. Com isso, o Brasil estaria mais alinhado às orientações internacionais de boas práticas na área, emanadas principalmente pelo Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento ao Terrorismo (GAFI).
A ideia central do modelo baseado na avaliação de risco é diminuir o volume de reportes realizados, dando maior eficiência às comunicações efetivamente feitas aos órgãos de inteligência financeira como é o caso do COAF.
Bernardo Mota, do COAF, observou que o órgão já se integrou ao Grupo de Trabalho interno do Ministério da Justiça e Segurança que vem reunindo contribuições para o aprimoramento da proposta de circular do Bacen, do qual também fazem parte o Departamento de Recuperação de Ativos Ilícitos e Cooperação Internacional (DRCI/MJ) e a Polícia Federal.
MODELO DE AVALIAÇÃO DE RISCO
Pierpaolo Bottini, do Bottini & Tamazukas, observou a importância de definir o conceito de beneficiário final da transação, trazido na proposta de circular. Segundo ele, por exemplo, CVM e Receita Federal, hoje, possuem uma definição diferente do termo. “Precisamos evitar que um não reporte, omitido por uma falta de compreensão sobre a norma, gere imputação criminal às instituições supervisionadas”. Segundo Marcus Vinicius de Carvalho,do Núcleo de Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo da Superintendência Geral (PLDFT/SGE) da CVM, o conceito de “beneficiário final” adotado deverá basear-se nas Diretivas da União Europeia e nas Recomendações do GAFI.
Em seguida, Antenor Madruga, fundador do ICJI e sócio do Feldens Madruga, chamou a atenção para o risco de que os clientes do setor financeiro acabem empurrados para sistemas não-regulados, como efeito colateral de uma análise mais rigorosa do perfil de risco de determinadas pessoas físicas e jurídicas.
Heloísa Estellita, coordenadora do GEDPE-FGV, salientou que existe atualmente uma diferença importante no tratamento de pessoas físicas e jurídicas no que diz respeito ao caráter liberatório da comunicação voluntária de movimentações suspeitas. Segundo ela, isso traz o risco de incriminação dos empregados das instituições financeiras como pessoas físicas, visto que as pessoas jurídicas possuem somente o dever de reportar operações suspeitas, mas não o de bloqueá-las. Assim, surgiria a possibilidade de uma imputação criminal do funcionário que realizou a operação por participação no delito de lavagem de dinheiro, enquanto para a instituição basta reportar a movimentação realizada para estar liberada de sanção.
Heloísa enfatizou ainda a importância de deixar muito claro qual é o evento a partir do qual será contado o prazo para comunicação da operação ao Bacen. “É preciso que esse tempo corra a partir do momento em que há a formação de uma suspeição por parte da instituição, que pode vir a ocorrer muito tempo depois da realização da operação em si”, observou.
Aline Menezes do banco UBS observou que passar a uma supervisão do sistema baseada em riscos é uma medida corajosa do Bacen, e mostra confiança na capacidade das instituições de darem conta dessa análise. Entretanto, observou que nem sempre o entendimento entre os diversos órgãos de regulação sobre princípios e critérios é suficientemente claro para garantir segurança jurídica aos agentes privados.
Antenor Madruga ponderou que, de fato, uma política mais inteligente e flexível, que conceda um maior grau de discricionariedade às instituições supervisionadas com relação às comunicações de operação, pode ter o condão de evitar o excesso de reportes desnecessários, muitas vezes usados como um mecanismo defensivo por parte do sistema financeiro. “Mas é preciso que os sistemas de comunicação como o SISCOAF, por exemplo, evoluam para acompanhar a nova lógica da norma. Caso contrário há um risco de insegurança jurídica”.
OUTSOURCING
“O trabalho de análise que a nova norma exige, e está no coração das normativas do GAFI e do Fundo Monetário Internacional (FMI), situa-se exatamente na fronteira entre uma atipicidade que pode ou não ser suspeita, e aquele elemento de inteligência trazido pela análise de risco que torna uma movimentação fora do padrão, de fato, suspeita”, resumiu Marcus Vinicius da CVM.
O “outsourcing”, ou a possibilidade de as instituições obrigadas receberem orientação externa ao realizar sua análise de risco, contratando serviços de consultoria de terceiros, também ocupou os debates. A redação atual do art. 42 da proposta de Circular do Bacen veda a contratação de terceiros para a realização da análise de operações e situações suspeitas. Isso impossibilitaria a contratação, sobretudo por parte de instituições de menor porte obrigadas a reportar, de escritórios de advocacia ou de contabilidade, entre outros. Tantos os representantes do setor privado quanto os do Poder Público convergiram no sentido de que o espírito da norma deve ser o de impedir a terceirização da responsabilidade de reportar, que pertence à instituição obrigada, que em nenhum momento pode terceirizar a decisão de comunicar ou não uma operação ao Banco Central, mesmo quando recorre a uma assessoria técnica externa.
João Rodrigues Bonvicino, da área de Compliance e Ética Corporativa do BMA, destacou alguns desafios associados à necessidade de analisar melhor o risco dos clientes, entre eles, a busca por informações mais completas e qualificadas por parte das instituições financeiras que precisam recorrer a provedores privados de informação. Um desafio ainda maior a partir do novo parâmetro de sigilo trazido pela nova Lei Geral de Proteção de Dados. “Não há dúvidas de que a nova norma impõe um nível maior de diligências privadas e um custo de observância maior, em alguma medida. Mas isso certamente será pacificado”, afirmou Marcus Vinicius da CVM.
Olavo Hamilton, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados (OAB) observou que é preciso uma discussão mais aprofundada sobre a responsabilidade da advocacia na prevenção à lavagem de dinheiro e no financiamento ao terrorismo, visto tratar-se de uma profissão que muitas vezes funciona como “gatekeeper”, especialmente quando exerce função de consultoria financeira, a exemplo também de contadores e outros profissionais. Marcus Vinicius observou que o GAFI está desenvolvendo um manual específico para a atuação dos advogados, que pode ser um norteador importante para essa discussão da advocacia no Brasil.
Fonte: ICJI, em 26.02.2019.