Nathália Ferreira dos Santos Codo1
Causou polêmica o Projeto de Lei n.º 442/2019, de autoria do deputado federal Rubens Bueno, que altera a legislação sobre lavagem de dinheiro. Com a recepção do PL, o artigo 1.º da Lei n.º 9.613/98, passará, em seu inciso III, a definir como crime, na mesma pena da lavagem de dinheiro, o recebimento de honorários, pelo advogado, de recursos que sabe ou que seja possível saber ser oriundo de atividade ilícita.
Vale lembrar que outros PLs já trataram do assunto no passado, tendo sido os de n.º 577/2003, 712/2003, 6413/2005, 5562/2005 e 7347/2006 barrados, por unanimidade, em junho de 2007, na Câmara dos Deputados, haja vista a inconstitucionalidade reconhecida neles.
Preliminarmente, é preciso realçar que o advogado que possui prévio conhecimento da origem ilícita de recursos que recebe a título de honorários, já incide no cometimento de ato criminoso, independentemente de reforma legislativa que preveja esta tipificação.
Isso se verifica a partir da análise do artigo 1.º, § 1.º, inciso II da Lei de Lavagem de Dinheiro, que prevê como crime equiparado ao de lavagem de dinheiro o ato de receber valores provenientes de infração penal.
Já no que tange à penalização do ato de receber recursos de que “devia saber” ser de origem ilícita, verifica-se que o anseio legal ultrapassa o dever do advogado.
Há transferência de uma responsabilidade estatal ao advogado que, na linha do projeto apresentado, deverá passar a investigar minuciosamente a origem dos recursos de seus clientes, antes de aceitar o patrocínio do caso.
O projeto de lei transveste o advogado equivocadamente de fiscal da lei, atribuindo a ele um dever estatal e trazendo temor ao exercício da função, haja vista a insegurança jurídica quanto ao seu papel.
Além disso, referida insegurança jurídica decorre da possível arguição acusatória, baseada num pensamento raso e simplista, de que o advogado que está atuando em caso construído por conta de supostas atividades econômicas ilícitas automaticamente incide no inciso comentado, invertendo-se o ônus da prova e passando o patrono a ter que responder por procedimento e processo criminal exclusivamente por ser remunerado pelo exercício de sua função.
O descabimento do desígnio legal também é verificado ao notarmos que todo e qualquer cliente deveria abrir mão da sua privacidade financeira e passar por um procedimento prévio, para, então, se aprovado, ter o direito de se defender na Justiça.
Além dos percalços atinentes ao tortuoso caminho do processo criminal, deverá o cidadão percorrer mais um momento burocrático e constrangedor, passando a ter o ônus da prova de sua inocência quanto à origem dos valores utilizados para pagamento de seus honorários advocatícios. Isso, sem sombra de dúvidas, demonstra a falha estatal e a inversão de papéis. Não mais se presumirá a inocência, com previsto na Constituição Federal, mas sim a culpabilidade.
Um esclarecimento adicional é necessário. Não serão afetados diretamente tão somente os advogados que militam na seara penal, mas também os patronos que atuam com direito tributário ou empresarial, por exemplo, e que podem ter contestada a licitude do patrimônio de seus clientes.
Além disso, a exposição desta obrigação à classe dos advogados é o ponto inicial para se estender o dever a outros profissionais liberais, que passariam a integrar o quadro de possíveis agentes ativos da modalidade de crime que poderá vir a ser inaugurada com a aprovação do projeto.
A interpretação do dispositivo legal desdobraria na obrigação a todas as pessoas de apurar a origem dos recursos utilizados por seus clientes para pagamento dos serviços, tornando a exceção uma regra.
A imposição da condicionante para a contratação dos serviços chegará ao extremo de ter o cliente que aguardar o processo de exame da origem de seus recursos para só depois ser defendido, ainda que haja urgência na defesa de sua liberdade, como se dá em casos de prisão cautelar.
Vale lembrar que o advogado tem o dever institucional de manter sigilo profissional, de forma que o cliente contratante possa confessar seus atos, ainda que criminalmente repreensíveis, justamente para manter a estratégia de defesa, alcançando um julgamento e uma pena justos.
Assim atribuir a obrigação de não atuar em casos em que há a possibilidade de o advogado ter conhecimento a respeito dos valores de origem ilícita utilizados para o pagamento dos honorários vai de encontro às suas incumbências legais.
Resta claro que a criminalização feita ao advogado resultaria em afronta direta à atividade da advocacia, atacando frontalmente a liberdade da profissão, fragilizando o sigilo profissional, e ignorando princípios constitucionais que visam a garantia de um processo justo, além de outorgar um dever estatal ao advogado, tornando o exercício de sua função um fardo dissonante à garantia da ampla defesa.
1Nathália Ferreira dos Santos Codo, advogada do departamento de Direito Penal Empresarial do Braga Nascimento e Zilio Advogados
Fonte: O Estado de São Paulo, em 18.03.2019.